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‘Chuva provoca tragédia e deixa mortos no Rio.’**
‘Tragédia mostra conveniência com o inaceitável.’**
‘Chuvas matam 54 pessoas e deixam 87 feridos.’Os enunciados acima são exemplos de três manchetes de jornais de grande circulação por ocasião das chuvas que aconteceram no Rio de Janeiro entre os dias 5 e 6 de abril. Segundo os dados oficiais, são mais de 200 mortos e pelo menos 11 mil desabrigados. Há ainda as famílias que, por determinação da prefeitura, terão que deixar suas casas nos próximos dias por ocuparem as chamadas áreas de risco. Portanto, não há dúvida de que se trata de uma tragédia. A questão que motiva este texto, entretanto, é uma reflexão a respeito do que está por trás da tragédia aparente, das vidas perdidas, das casas soterradas, das manchetes sensacionalistas e vazias.
A cobertura da imprensa carioca não foi muito diferente daquilo que vem sendo feito em termos gerais nos grandes veículos – em capital e audiência – no resto do Brasil. Nos referimos à descontextualização dos fatos em nome de uma certa objetividade e ao privilégio de algumas informações em detrimento de outras. Mas também e, sobretudo, a uma tendência a reduzir o acontecido à esfera subjetiva, transformando a cobertura em um apanhado de emoções, onde a informação é escassa.
Um déficit histórico de habitação
Basta pensarmos em como as fontes ‘oficiais’ se resumem ao poder público e um ou outro especialista – cidadãos que, certamente, não tiveram suas casas alagadas, salvo algumas raras exceções. Aos moradores das favelas e periferias, principais vítimas dos fatos, resta o lugar da emoção. A eles cabe apenas responder ‘como se sentem’, ‘qual o tamanho da dor’, ‘o que fazer depois da perda’. Por que um favelado nunca é questionado sobre as razões de estar morando em uma dada localidade? Por que não perguntar aos moradores do Morro do Bumba, Niterói, como foi que a prefeitura estimulou a ocupação do lixão, inclusive construindo creches e asfaltando? Por que não permitir que aqueles que tiveram suas casas soterradas dêem sua versão da ‘tragédia’?
As respostas podem ser muitas. Mas a que nos ocorre e que coincide com a ideia que queremos sustentar aqui é: em meio ao caos, cabe à imprensa o papel de construir a representação que o explica. No caso dos últimos acontecimentos do Rio de Janeiro, a chuva causou um desastre.
Para além da representação que faz da chuva um sujeito independente e cruel, chamou a atenção na cobertura dos grandes meios uma tendência à culpabilização das vítimas. Uma boa análise do discurso que vigorou nos jornais nesse período certamente encontraria aí material para meses de estudo. Esta não é nossa intenção aqui. No entanto, não há como deixar de notar que ao lado dos jargões já conhecidos – tragédia, caos, calamidade, desastre e sua variante, desastre natural – teve lugar de destaque na cobertura dos fatos o argumento de que boa parte das mortes foi causada pelas chamadas ocupações irregulares ou as tais áreas de risco. O que não aparece é o que está por trás delas: um déficit histórico nas políticas de habitação, que desde o início do século passado faz com que os mais pobres ocupem morros e encostas.
A natureza não é vilã
Se por detrás das ocupações irregulares está a falta de moradia, o discurso da ‘crueldade’ das chuvas serve para encobrir as misérias do cotidiano. Ou melhor, as chuvas vêm para descortinar o cotidiano das centenas de milhares de pessoas que habitam localidades precárias, sujeitas diariamente aos riscos da falta de saneamento, de infra-estrutura, de toda forma de políticas públicas.
Não ignoramos a conjunção de fatores que contribuíram para um enorme volume de chuvas em apenas 24 horas. Tampouco desconsideramos as sutis mudanças observadas nos padrões pluviométricos ao longo dos últimos cem anos, isto é, ainda que o volume mensal de chuvas não tenha sofrido alteração, estas chuvas estão menos distribuídas e mais concentradas em poucos dias. No entanto, se houve um fator decisivo para a configuração da tragédia, este não foi a chuva.
Eventos chuvosos dessa dimensão não são inéditos, como também não são novos os abalos sísmicos da ordem de oito graus na escala Richter que abalaram o planeta neste início de ano. É o fator social que torna eventos naturais cada vez mais impactantes. Se as chuvas e os terremotos matam mais hoje é porque eles têm atingido áreas cada vez mais densamente povoadas e cada vez menos providas de infra-estrutura básica. Em ambos os casos, a natureza não é vilã.
O papel relevante da imprensa
O tecido urbano da cidade do Rio de Janeiro e seu entorno espraiou-se, adensou-se, mas não foi provido da infra-estrutura necessária para o escoamento das águas. A condição de cidade litorânea, com partes localizadas no interior de uma baía, somada a um relevo acidentado e de colinas, cria um quadro natural que potencializa as possibilidades de enchente em casos de chuva forte. Junte-se a isso o crescimento das superfícies impermeabilizadas por concreto e asfalto, a canalização dos rios, a obstrução das galerias pluviais e a ausência ou precariedade delas em grande parte da cidade, especialmente nas áreas periféricas e tem-se a receita para o desastre.
As mudanças necessárias para que as tristes cenas do dia 6 de abril não se repitam, certamente, não ocorrerão em dias ou semanas. Se outra realidade é possível, ela só pode ser pensada além do aparente, das representações vazias. Nesse contexto, a imprensa tem papel relevante. Primeiro como fonte de informação dos cidadãos. Mas informação precisa, que dê conta dos fenômenos sociais que levam à tragédia. Não uma cobertura que exponha apenas o número de mortos ou o sentimento das vítimas. Segundo, ocupando o lugar que lhe cabe desde seus primórdios: arena pública do debate. Ora, qual é então o papel dos meios de comunicação senão fazer com que homens e mulheres reflitam, troquem ideias e criem juntos? Infelizmente, não foi isso que estamparam os jornais das duas últimas semanas. Que nos meses de abril que virão possa ser diferente.
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Respectivamente, geógrafo e doutorando em Geografia na UFRJ; e jornalista