Cena 1: jantar com o candidato a Presidência da República com a presença de dois marqueteiros, um deles gringo que veio ajudar na campanha e mais alguns assessores e gente da confiança do partido, inclusive um ex-militante de esquerda, que fora preso e torturado.
Cena 2: O candidato se vira para o ex-militante e pergunta:
– Você foi preso muito tempo, né Zezinho?
– Fui sim.
– Eu não conseguiria ficar preso com um monte de negros. Negro quando não faz na entrada, faz na saída.
Fecha o pano.
Alguns anos depois, candidato eleito e governo com índices de aprovação nunca vistos nesse país, Zezinho resolve contar esse episódio, em artigo ocupando página inteira em jornal de grande circulação nacional, como contraponto ao filme recém-lançado sobre a vida do agora presidente, onde nem de longe episódios desse tipo aparecem.
O artigo cai como uma bomba entre a bem-pensante opinião pública nacional. Imediatamente a assessoria do governo reage, dizendo que a frase do presidente não passara de uma ‘brincadeira’, piadinha inocente a que todo bom brasileiro está acostumado a ouvir e a contar nos botecos da vida. E mais, o presidente é um ex-pau-de-arara e ex-operário, cabra macho, ‘ralou’ muito para chegar onde chegou, tem um ‘reconhecimento nacional e internacional nunca vistos’; o que significa uma piadinha dessa, tão inocente, diante de uma biografia tão espetacular? E as declarações continuam: quem é esse tal de Zezinho, que importância tem o que ele diz? Não passa de um ressentido, vai ver que queria ser presidente e não conseguiu…
Elite branca
O desconforto, no entanto, é patente. Mas como todo bom profissional de marketing sabe muito bem, diante de um ‘pepino’ desses, a alternativa é mudar rapidamente o foco do problema.
E isso é fácil. O problema é a ‘mídia’, que está sempre contra o presidente. Como prova de que isso é verdade, recentemente o mesmo presidente declarou seu inconformismo diante da opinião jornalística: jornal só devia dar os fatos (sic). Pudesse ele, acabaria com 500 anos de história do jornalismo no Ocidente, calcado fortemente no ‘comment’ (comentário), em oposição à ‘news’ (notícia), os dois pilares do jornalismo que funda a modernidade.
Também tem culpa o jornal que publica esse tipo de artigo, diz renomado jornalista, um lixo que não merece o lugar que ocupa. O mesmo jornalista, de repente, esquece toda a tradição de relação com a política que fundamenta o jornalismo aqui e em qualquer outra democracia e que forma a espinha dorsal de qualquer bom jornal: poder é para ser fiscalizado e criticado, o jornalismo deve, inclusive, ser o quarto poder. Jornal subserviente ao poder, qualquer poder, não é jornalismo, ‘é marcenaria’, disse outro também afamado jornalista.
Mas tem mais: tem a elite branca que não aceita um operário no poder; que não quer ver o povo melhorar. Tenho certeza que você, leitor, tem ‘zilhões’ de exemplos que confirmam os marqueteiros (e também Freud): a culpa é do outro.
Baixa oportunidade
No meio desse fogo cruzado, nem tão amigo assim, mas de grosso calibre, alguns poucos que procuram compreender a estória de uma perspectiva, digamos assim, mais racional, são simplesmente massacrados. Não pode existir vida inteligente fora do maniqueísmo e do moralismo mais rasteiro, imaginam os marqueteiros, fazendo coro com os políticos. Estamos tão felizes comprando carro, geladeira e vamos à faculdade, o que esse chatos querem mais?
Mas alguns ainda insistem e fazem a pergunta essencial, jogada para escanteio por todos: o que a brincadeira inocente, na mesa do bar, quer dizer? Ela esconde uma profunda ignorância e rudeza cultural, mostra pouquíssima elaboração da sensibilidade, e abre para uma das questões mais graves da democracia de massas: como elevar os pobres (ou humildes para ser politicamente correta) a uma cultura mais elevada, em contato com grandes temas da civilização que por décadas passaram ao largo das discussões no Brasil. Nesse sentido, Caetano Veloso tem razão: o analfabetismo é muito mais grave do que se pode supor à primeira vista. Brecht dizia do analfabeto político, agora estamos diante do analfabetismo strictu senso, aquele cultural, de consequências inimagináveis.
Gabar-se de comportamentos machistas e autoritários, afirmar a pretensa superioridade masculina pela performance sexual e, em conseqüência, ver a mulher como aquela para ‘usar ou exibir’ como bem denunciou o poeta há muitos anos, ver o negro como inferior, o homossexual como desprezível, são todas manifestações da mesma origem: a tosca cultura popular, fruto da baixa oportunidade de vida, do pouco desenvolvimento econômico, tecnológico e social do pais, da exploração a que a grande massa é submetida, que devemos combater em qualquer um que a manifeste, principalmente se for um presidente da República.
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Jornalista e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)