Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Sobre viver o passado

Semana passada, escrevi no Estado de S. Paulo uma coluna sobre o passado que aprisiona a nossa imaginação (ver ‘O passado como cárcere‘, 22/4/2010). Falei mais de política: de certas fantasias ou mistificações passadistas – da esquerda e da direita. À direita, temos aí esse discurso de que o golpe militar de 1964 salvou o Brasil do comunismo. Há militares, atados até hoje a heroísmos de antigamente, que falam da democracia atual como se ela fosse uma dádiva que a ditadura nos legou, depois de ter vencido a ‘guerra’ contra a esquerda armada. Trata-se de uma agressão à lógica, uma vez que a democracia no Brasil foi conquistada pelos adversários do regime, inclusive por aqueles que os agentes de segurança não conseguiram matar – e que, depois do exílio ou da cadeia arbitrária, voltaram à legalidade. Vários deles, como Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva estão na ativa.


À esquerda, há aquela outra mistificação, a de que os ‘benefícios’ sociais como emprego, escola e leitos hospitalares justificam restrições à liberdade. De novo, o que aparece aqui é uma fantasia – ou uma ‘utopia’, essa palavra tão ao gosto da mística da esquerda – que teve seu apogeu nos anos 1910 e 20, depois passou por uma ressurreição, nos anos 1960, e que também encarcera a imaginação a tempos idos. Hoje não restam mais dúvidas: onde se amofina a liberdade não pode haver conquista social alguma. Nenhuma. Não obstante, ainda existem aqueles que em nome de ideais socialistas fazem reverência – e batem continência – para ditadores. É chato, mas é assim que é.


Esses dois projetos fantasiosos cujo prazo de validade já venceu – tanto o de instaurar uma ditadura para combater, por meio da guerra interna, o inimigo infiltrado, como o de mandar às favas as liberdades ‘burguesas’ como se elas fossem um obstáculo para as políticas igualitárias – são meio irmãos. Imbricam-se um no outro, mais ou menos como o nazismo e o stalinismo, que criaram uma convivência, ainda que arisca, pontuada por interdependências e de simbologias espelhadas (Joseph Goebbels bebeu no cinema de Sergei Eisenstein para criar sua máquina de propaganda).


Forma de esquecimento


Nada é mais importante para um ditador – pretérito ou atual, de esquerda ou de direita – do que o inimigo. O maior aliado de todo ditador é o inimigo que ele alimenta na imaginação do povo (que finca raízes em medos do passado). Agora, é o passado que alimenta a nossa triste imaginação com seus paraísos anacrônicos, que viriam até nós por obra e graça da força bruta. Sim, é muito chato. Mas é assim. Ainda moramos dentro dessas armaduras.


Mas isso, esse passadismo enrijecido, não se limita ao espectro político-ideológico. Paro um pouco nessa palavra, espectro. Espectro político-ideológico é um lugar comum. A gente digita espectro e logo o computador preenche o resto sozinho: político-ideológico. Mesmo assim, acho que espectro é um bom termo, aqui especialmente, porque ele quer dizer também fantasma – e esse passadismo enrijecido no campo ideológico atua mais ou menos como um fantasma renitente. E o pior é que não atua apenas aí – no tal espectro político-ideológico. Atua em diversos campos da nossa tênue existência.


Atua, por exemplo, nas pessoas que vão perdendo os cabelos, o que acontece comigo, lamentavelmente. A gente não se dá conta do ridículo. Depois do banho, a gente se olha no espelho, ar compenetrado, apanha um pente e passeia com ele pela calva, alinhando fios que já não existem mais. Sempre penso nisso quando reparo no modo como Geraldo Alckmin reparte seu cabelo de lado. Esse pentear-a-cabeleira-que-já-não-há tem um quê de melancólico, ou, mais ainda, de soturno. Pentear-a-cabeleira-que-já-não-há é como ‘arrumar o quarto do filho que já morreu’, naquele verso da canção de Chico Buarque.


Rigorosamente, quando passamos escova pelo cocuruto vazio e liso, estamos vendo no espelho a nossa imagem passada, ultrapassada. Não nos vemos como realmente somos, pois, se víssemos, o gestual daquele penteado seria insustentável, mais ou menos como ler um livro em branco ou como fumar e tragar o cigarro que não temos entre os dedos, apenas para deixar passar a vontade (e a saudade). É um jeito bizarro de viver no passado.


Ser fiel à mulher que já se mandou (está noutra) também é um modo de viver no passado. Aquela figura que partiu ainda prende o sujeito em suas lembranças, e o desejo desse sujeito quase sempre será um desejo de restauração (sim, eu sei que todo desejo tem um empuxo de restaurar o perdido, mas aqui é pior) – um desejo conservador. Novamente, o que temos aí são passadismos enrijecidos, que impedem a vida de seguir seu curso, seu movimento. Com todo o respeito, nada mais reacionário. Por isso anotei, naquele artigo do Estadão, que aferrar-se ao que já foi e, por isso, não enxergar o presente, também é uma forma de esquecimento: invertida, bruta e sombria. Talvez até pior – depende do caso.


Necessidade da razão


E aqui chego ao ponto da liberdade de imprensa. Serei breve – já fui demasiadamente extenso para dizer o que está acima, e que não tem importância. Temos o hábito de confundir três categorias distintas, três campos próprios da liberdade, como se eles pudessem se resolver segundo os mesmos expedientes.


O primeiro é o núcleo da liberdade de imprensa – a cara-metade do direito à informação e à comunicação. Esse, por ser direito fundamental, pode apenas ser protegido pelo Estado, mas não pode ser regulamentado. Sei que alguns têm dificuldade de compreender esse ponto, mas não vou explicá-lo agora.


O segundo campo – relativo à segunda categoria – é aquele das ações que se relacionam à liberdade de imprensa: o direito de resposta, as indenizações, matérias sobre as quais pode caber alguma regulamentação.


Por fim, temos a regulação – e não regulamentação – que permite disciplinar a concorrência entre as empresas, as redes e os canais de radiodifusão (rádio e TV). Nesse campo, para preservar tanto a competição saudável quanto a pluralidade de vozes (princípios democráticos que estão na missão da Federal Communications Commission – FCC – americana há mais de 70 anos), existe a ferramenta da regulação. Mas isso, atenção, nada tem a ver com a verificação e muito menos com a filtragem de conteúdos. A liberdade de expressão não é – nem poderia ser – ferida pela vigência da regulação.


Pois bem, onde é que o passado nos aprisiona quando o tema é a liberdade de imprensa? Ele nos aprisiona pelo desejo de vingança. Uns acreditam que, uma vez ‘tomado o poder’, deve-se obrigar os difusores de mentiras do passado a pagar pelos pecados que cometeram – mesmo que esses pecados não estivessem previstos em lei. Outros acreditam que todos aqueles que falam em regulação ou regulamentação dos meios de comunicação precisam ser silenciados e ridicularizados, porque esses, que falam em regulação e regulamentação, querem mesmo é amordaçar as empresas – e isso não é verdade.


Uns e outros gritam com determinação. Gritam o tempo todo. Gritam em nome do passado, do acerto de contas, da eliminação do oponente. Assim, gritando, golpeiam as necessidades presentes da democracia – que nunca dependeu tanto da razão (e da razoabilidade) como agora, nessa transição polarizada em que nos encontramos.

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Jornalista, professor da ECA-USP