Agitados, para dizer o mínimo, têm sido os últimos dias para anunciantes, agências de publicidade, a mídia e os publicitários. No Congresso Nacional, 198 deputados federais (38,6% do total) e 38 senadores (47%) criaram a ‘Frente Parlamentar Mista de Comunicação Social’. O requerimento foi apresentado pelo deputado Milton Monti (PR-SP), com o apoio do presidente dos DEM, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ); do vice-líder do bloco PSB, PDT, PCdoB, PMN e PRB, deputado Miro Teixeira (PTD-RJ) e do presidente do PMDB, deputado Michel Temer (PMDB-SP).
Depois de 30 anos, realizou-se, em São Paulo, o IV Congresso Brasileiro de Publicidade, reunindo cerca de 1.500 profissionais da mídia, das agências de publicidade e de prestadores de serviços de marketing. Nele foi criado um Fórum Permanente para discussão de temas de interesse do setor, com novo encontro já agendado para maio de 2009.
Eufóricos, os principais organizadores do congresso – Dalton Pastore, presidente da Associação Brasileira de Agências de Publicidade (ABAP) e Luiz Lara, presidente da agência LewLara/TBWA – anunciaram: ‘Agora somos uma `indústria da comunicação´, unida pelos interesses comuns desse mercado, que movimenta cerca de 57 bilhões de reais ao ano’.
O mote para toda essa movimentação, objeto de repúdio específico no documento final do IV Congresso Brasileiro de Publicidade, foi: ‘Todas as iniciativas de censura à liberdade de expressão comercial, inclusive as bem intencionadas’. Em português claro isso quer dizer: defesa intransigente da auto-regulamentação e combate sem trégua às iniciativas legislativas que buscam o cumprimento do que determina o parágrafo 4º do Artigo 220 da Constituição, que reza o seguinte:
‘A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.’
Duas noções de liberdade
Curioso conceito esse de ‘liberdade de expressão comercial’. Desde que foi apresentado e defendido por celebridades jurídicas no livrete Garantias constitucionais à liberdade de expressão comercial, publicado pelo Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar), em 2000, constituiu-se na principal bandeira dos interesses da ‘indústria de 57 bilhões de reais/ano’.
O conceito de ‘liberdade de expressão comercial’, além de transformar em equivalentes dois tipos totalmente distintos de informação – a publicitária e a jornalística – apropria-se, sem mais, da idéia de liberdade de expressão como se a mídia, anunciantes e agencias de publicidade fossem os legítimos representantes do direito individual e coletivo contra a ‘censura’ e a ‘sanha regulatória’ exercidas pelo inimigo público número 1 – claro, o Estado.
Quem quiser se aprofundar no tema da ‘liberdade de expressão comercial’ e compreender a disputa jurídica envolvendo duas noções de liberdade – a neoliberal vs. a social-democrata – não pode deixar de ler o artigo de Maria Eduarda da Mota Rocha, ‘O Canto da Sereia – Notas sobre o discurso neoliberal na publicidade brasileira pós-1990‘, publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais (nº 64, junho de 2007). O texto é apenas uma pequena parte de sua tese de doutorado em sociologia defendida na Universidade de São Paulo (USP), em 2004.
Dentre outros pontos, Mota Rocha lembra que, desde a Constituinte de 1987-88, havia o temor de que ‘a incorporação de demandas das classes populares e médias pelo Estado comprometesse a livre atuação do capital’ e, portanto, ‘crescia a necessidade de uma ação sistemática de propaganda para fazer as classes dominantes aparecerem como representantes da `sociedade civil´, cuja legitimidade havia sido consolidada na luta contra o autoritarismo’.
É daí que surgem, na década de 1980, campanhas publicitárias lideradas pelo Conar cujos conceitos ‘não há liberdade política sem liberdade econômica’ e ‘o sistema da livre iniciativa é a base da democracia’. E, nos anos 1990, ao lado da retórica do capitalismo benevolente e da responsabilidade social, emerge a defesa da ‘liberdade de expressão comercial’.
Descumprindo tanto a lei quanto a auto-regulamentação
Enquanto isso, relatório divulgado na segunda-feira (14/7) pelo Observatório de Mídia Regional – grupo de pesquisa da pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, coordenado pelo professor Edgard Rebouças – revelou que nove concessionárias do serviço público de rádio no Recife desrespeitam aberta e sistematicamente a legislação que proíbe a publicidade de bebidas alcoólicas de alto teor das 6 às 21 horas, e desrespeitam também o próprio Código de Auto-Regulamentação Publicitária (disponível aqui).
A pesquisa, realizada durante seis meses, comprovou que as irregularidades variam de 45 segundos a 135 minutos semanais em anúncios com formato de spot, jingle e testemunhal nas emissoras JC-CBN, Transamérica, Recife FM, Clube FM, 102 FM, 103 FM, Clube AM, Rádio Jornal e Rádio Olinda.
Entre as bebidas alcoólicas anunciadas estão as cachaças Pitu e 51, as vodcas Orloff e Bolvana, o rum Montilla e toda a linha da marca Bebidas D´Ouro (cachaças, licores, conhaques e rum), sendo que as agências de publicidade responsáveis são a Ampla, o GrupoNovo, a Loducca e a Ogilvy & Mather.
O relatório da pesquisa foi encaminhado ao Ministério Público do Estado de Pernambuco, à Agência Nacional Vigilância Sanitária (Anvisa), à Vigilância Sanitária da prefeitura do Recife, à Secretária de Saúde do Recife, à Ordem dos Advogados do Brasil, ao Conselho Regional de Psicologia, ao Conselho Regional de Medicina e a várias organizações não-governamentais ligadas a questões da infância, da violência e dos direitos humanos.
Sem qualquer tutela
Tudo indica, no entanto, que, ao descumprir o já normalizado, insistir em considerar como censura a regulamentação do texto constitucional, e acusar o Estado de querer ‘tutelar’ a população na defesa do que chama de ‘liberdade de expressão comercial’, publicitários, anunciantes e empresários de mídia não estão se dando conta de que batem de frente com a sociedade civil organizada e a nova opinião pública brasileira.
Há razões de sobra para se acreditar que a sociedade civil organizada não quer mesmo ser tutelada por ninguém – nem pelo Estado e nem pelo ‘mercado’ – e, muito menos, aceita que interesses puramente comerciais se apresentem como sendo os seus e ajam em seu nome para impedir a regulamentação da publicidade de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias.
Desconsiderar o quanto a consciência do cidadão consumidor tem avançado no Brasil em relação a seus direitos (e deveres) não é uma boa estratégia. É, ao contrário, um equívoco que, mais cedo ou mais tarde, ficará claro para os poderosos da ‘indústria de comunicação’ e que, dificilmente, poderá ser contornado por campanhas publicitárias.
Leia também
Tomando liberdades com a liberdade – Alberto Dines
‘Liberdade de expressão publicitária’, uma falsa discussão – Paula Ligia Martins e Maíra Magro
******
Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)