Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sobre os líderes e o “exotismo” continentais

‘Curioso’ é o mínimo a se dizer do editorial em que O Globo (30/11/2007) diz caber ao Brasil ‘sair de sua postura acanhada, reflexo de afinidades ideológicas em Brasília com aqueles líderes, para desarmar situações danosas à democracia, ao desenvolvimento e à paz no Continente’. A palavra ‘aqueles’ refere-se a Hugo Chávez, na Venezuela; Evo Morales, na Bolívia e Rafael Correa, no Equador, categorizados como ‘líderes com projetos exóticos’. Se por uma inflexão qualquer do Destino Fidel Castro retomar plenamente as suas funções em Cuba, mais um nome certamente se acrescentará ao ‘exotismo’ detectado pelo jornal.


Esse tom opinativo é mais ou menos generalizado na grande imprensa nacional e corroborado aqui e ali por articulistas de linhagens diferentes. Tende a ampliar-se, principalmente agora que Chávez perdeu o referendo em seu país. O termo ‘exotismo’ é de aplicação nova, mas equivale às numerosas conotações de artificialismo político atribuídas àqueles líderes. Haveria, assim, lideranças ‘verdadeiras’, ‘naturais’ ou culturalmente convenientes, em oposição a outras, inadmissíveis pelo cânone civilizado.


É preciso, entretanto, trazer sempre à lembrança o fato de que o conceito de artifício integra as fundações da política e da democracia modernas, quando se passa da velha ‘naturalidade’ aristotélica do bom governo dos homens para a concepção de política como um artifício impeditivo do caos. É esta a lição de Maquiavel, pensador inaugural da modernidade política (exatamente porque a concebe fora de qualquer transcendência), segundo o qual o controle deve centralizar-se na figura arquetípica do príncipe. Este detém as condições individuais (virtù), tais como sabedoria e força, para atuar como líder (condottiere) nas condições sociopolíticas existentes (fortuna). Maquiavel renega a lição grega (aristotélica): não é a virtude que importa, mas o ser considerado virtuoso; portanto, não o valor, mas a sua imagem.


Máquina de poder


A modernidade política desloca, assim, a ênfase posta na Antiguidade sobre a relação harmônica entre os homens para se obter coesão social e põe em primeiro plano a arte de governar, que implica engano ou ‘astúcia da raposa’, não por desejo de amoralidade, mas por ter o Estado como valor mais alto. Ao modo dos artistas do maneirismo (derivação do barroco, onde proliferavam as distorções, os jogos de espelhos, as máquinas de produzir sombras), o príncipe deveria ser um mestre do embevecimento e do engano. O poder político seria regido por uma espécie de princípio da ‘sincera ilusão’: finge-se sempre, inclusive acreditar no que se finge.


O maquiavelismo, como observa Norberto Bobbio, é ‘a exposição teórica mais audaciosa sobre o absolutismo do poder estatal’, isto é, do Estado sem limites. Diz:




‘Quando se proclamava que o príncipe estava acima das leis, geralmente não se queria dizer com isso que ele estivesse também acima das leis divinas e morais. Por meio da teoria do maquiavelismo são quebrados também esses limites: o príncipe não é mais somente livre dos vínculos jurídicos, mas é também (para usar uma expressão provocativa) além do bem e do mal, quer dizer, livre dos vínculos morais que delimitam a ação dos simples mortais’ (em Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant).


A soberania estatal – definida como potestas superiorem non recognoscens, isto é, ‘poder que não reconhece superior’ e encarnada num complexo aparato de coerção – justificava-se pela doutrina de uma moralidade ‘natural’, presumidamente capaz de garantir a autonomia do sujeito e seus direitos individuais. Na supremacia dessa máquina de poder sobre toda a sociedade humana assentam-se as bases do estado de direito e da democracia moderna.


Sugestão anacrônica


O que O Globo parece criticar nos líderes latino-americanos citados é a excessiva visibilidade do artifício, provocada pelo emprego de inusitados recursos regionais (‘bolivarismo’, indigenismo, culturalismo diverso etc.), com vistas à sedução das massas. Ora, a crítica jornalística associa essas idéias ou slogans, aparentemente ‘fora do tempo’, a clamores reais de autonomia nacional, conotando-os conjuntamente como anacronismos políticos; ora, a crítica se detém na gestualidade, na fala ou na aparência física daqueles líderes, confundindo por metonímia as pessoas individualizadas com reivindicações políticas coletivas.


O padrão civilizatório europeu é o fiel da balança: é o que não deixa perceber que um rei europeu em pleno século 21 pode ser tão anacrônico quanto um caudilho sul-americano. Ou, então, não deixa perceber que os aparentes caudilhos, longe de serem ‘exóticos’, são emanações reais de uma situação política local, tão só diferente da européia.


Mas curiosa mesmo no citado editorial de O Globo é a explícita sugestão de uma intervenção brasileira, o abandono de uma ‘postura acanhada’. A sugestão é anacrônica. O resultado do referendo na Venezuela demonstra que as massas, em sua autonomia histórica, ainda são capazes de se revelar suficientemente ativas para expressar a sua vontade política.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro