Como sempre a intenção não poderia ser melhor: a causa da desconcentração da mídia merece todo o empenho. Mas, como sempre, o governo se enroscou na hora da realização. O decreto que criou a RTVI (Retransmissora de TV Institucional) na última quinta-feira (24/2) peca pela improvisação, pela falta de transparência e pela oportunidade.
Duas semanas antes, no dia 10, o governo criou o canal TV Brasil para permitir que o Estado brasileiro (leia-se as emissoras de TV dos três poderes) comunique-se com os países vizinhos [abaixo, remissões para os artigos ‘Idéia infeliz, arrazoado pior’ e ‘Uma nova alternativa no ar?’].
Agora, com a RTVI, pretende oferecer à maioria das prefeituras do país a possibilidade de criar um canal de TV local para a ‘divulgação das atividades do Poder Executivo do Município’.
Não é coincidência, trata-se de uma indisfarçável febre televisiva. E como todas as febres, sintoma de alguma disfunção. Não é difícil diagnosticá-la: o início da temporada eleitoral.
Se o governo pretende efetivamente oferecer aos municípios uma cobertura televisiva isenta não precisa recorrer a uma intervenção com todas as aparências de recurso político-eleitoral. Para obter efeito maior e, sobretudo, duradouro, bastaria que, por meio do Ministério das Comunicações, acabasse com as gritantes irregularidades na concessão de canais de rádio e TV – a aberração genética do sistema midiático brasileiro implantada pelo então presidente da República, José Sarney.
Começam na distribuição e renovação dos canais os dois maiores problemas informativos brasileiros: a concentração da mídia em poucas empresas e o controle do noticiário local.
Fiscalização relapsa
Quem examinar o funcionamento do rádio e da TV no Pará, por exemplo, entenderá por que razão o vulcão em ebulição na Terra do Meio só foi revelado depois da morte da missionária Dorothy Stang.
Se o objetivo do governo é democratizar a informação e intensificar a diversidade de opiniões, o caminho será bem diferente do sistema RTVI. Em primeiro lugar, porque a RTVI não funcionará em canais abertos, mas no sistema restrito de TV por assinatura. Em segundo lugar, porque em vez do controle das redes abertas locais pelos deputados e caciques políticos, teremos os prefeitos, geralmente ungidos pelas oligarquias locais, transformados em diligentes produtores de TV.
Quem impedirá que esses burgomestres-âncoras de TV usem os seus canais para perseguir a oposição?
Se o Ministério das Comunicações (eminentemente político-partidário) tem sido visivelmente relapso no controle das concessões do sistema aberto de rádio e TV, se o Ministério da Justiça (teoricamente o braço forte do governo) treme de medo diante do poder dos políticos-concessionários e não consegue impor a adequação de horários na programação da rede aberta de TV, como esperar que o governo vá enfiar-se nos grotões para impedir desmandos dos prefeitos ou seus grupos políticos?
Febre suspeita
É evidente que os lobbies das televisões privadas não gostaram da RTVI, mas isso não significa que o governo está certo ao criá-la. Os lobbies privados estão apenas interessados em saciar os respectivos apetites, despojados de qualquer interesse público.
Espernearam quando o governo do presidente Lula (dando seqüência, à política do ex-ministro da Justiça José Gregori) resolveu enquadrar emissoras de TV que exibiam programação indevida no horário vespertino. O funcionário do Ministério da Justiça foi afastado em pouco mais de 24 horas depois de publicado o ato no Diário Oficial diante da formidável pressão exercida pelos deputados-concessionários (a maioria evangélica, do PL) [veja abaixo remissão para o texto ‘A TV como campo de batalha’].
Se o governo deseja efetivamente democratizar a mídia local no Brasil, e oxigenar a informação que nela circula, precisará de uma dose extra de coragem para, primeiro, desafiar o conglomerado de interesses político-privados que deformam a informação eletrônica e, depois, enfrentar cerca de 30% dos parlamentares federais que direta ou indiretamente detêm concessões de radiodifusão.
Depois da fragorosa derrota na Câmara dos Deputados e da eleição do rei do fisiologismo, Severino Cavalcanti, para presidi-la, difícil imaginar que o governo do presidente Lula disponha-se a enfrentar o lobby dos parlamentares-concessionários.
Preferiu deixá-los sossegados e encomendou ao seu laboratório de legiferação um decretinho sob medida. Dele acaba de sair um arremedo de solução, a RTVI. Deveria pedir ao mesmo laboratório um remédio para debelar a furiosa febre que 20 meses antes das eleições parece muito suspeita: a televisite aguda.