Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Somos todos responsáveis

Frente à avalanche de notícias, declarações e descrições maquiavelicamente detalhadas pelos diversos meios de comunicação sobre como foi dado cabo à vida de Eliza Samudio, ex-namorada do ex-goleiro Bruno, uma constatação parece ser ainda mais aterradora que a crueldade do caso em si: todos nós, integrantes e partícipes da era hipermoderna, fomos cúmplices do assassinato daquela jovem.

Antes que o leitor reúna em milésimos de segundos julgamentos sobre a afirmação acima – embasando sua contrariedade em argumentos pré-construídos e politicamente corretos de que ‘jamais consentiria com um absurdo desses’ – convido, em especial os mais afrontados pela constatação, a uma autorreflexão sobre os sustentáculos comportamentais da sociedade em que vivemos e que, daqui a muito pouco tempo, estará sob o controle de nossos filhos e netos.

Estamos permissivos com a violência e com a fragmentação humana. E o mais grave é que esse consentimento parece ter se tornado involuntário e não raciocinado. De tudo o que já foi divulgado sobre o caso até agora, a informação mais chocante talvez tenha sido a que atropelou o menor e mais ínfimo limite de respeito que algo ou alguém pode merecer. A frenética e mórbida procura pelo filme adulto nos camelódromos de Contagem (MG) do qual Eliza, afirmam, participou quando tinha 22 anos, foi exposta em uma reportagem como a oportunidade encontrada pelos comerciantes da região para aproveitar a tragédia e ‘colocar dinheiro em caixa’. Segundo revelou a matéria, a procura pelo DVD é tamanha que faltam cópias para a venda.

‘Melhor ser temido do que admirado’

Na reportagem, nenhuma análise comportamental do abuso foi feita. Talvez por não haver análise a fazer. O fenômeno por si só já é cruel e suficientemente duro para dispensar qualquer explicação moral ou científica. Por que permitimos que isso aconteça? De onde vem essa morbidez e evidente falta de respeito com uma pessoa que nem mais viva está para defender-se se assim desejasse? Por que, afinal, parecemos não nos sensibilizar com atrocidades como essa e ainda potencializamos a gravidade dos fatos que, sozinhos, já contariam com elementos tétricos suficientes para compor um roteiro de filme de terror? Porque cultivamos a violência diariamente. E fazemos isso dentro de casa, com as pessoas mais próximas, que dizemos que mais amamos. Os filhos, por exemplo.

Tolice seria afirmar que nenhuma família está isenta dessa generalização. No entanto, quando o governo de um país precisa intervir na criação de suas crianças, assinando um projeto de Lei que proíbe o castigo físico contra menores, como foi feito no Brasil em 14 de julho, algo não vai bem. Curiosa não é apenas a iniciativa, mas também a repercussão da opinião pública sobre a Lei. Não são poucos os comentários direcionados às reportagens de pais indignados com a novidade. A defesa de seus argumentos baseia-se no fato de que para educar é preciso ‘dar algumas palmadas’. E que não cabe a nenhuma Constituição definir qual a melhor e mais eficiente forma de educar seus filhos. Será? É quando surge esse questionamento que a maior dúvida também aparece: por que motivo esses pais ainda não conseguiram conquistar o respeito de seus filhos pela admiração? Por que o respeito em nossa sociedade parece só ser garantido através da política do medo, do temor? Tudo indica que acreditamos na máxima ‘é melhor ser temido do que ser admirado’.

A doença da revolta

O abuso do assassinato e o desrespeito contra a identidade da Eliza morta são apenas os sintomas de uma doença grave e infecciosa que continua a se alastrar, contaminando os futuros agentes de transformação da nossa sociedade: as crianças e os jovens. Legitimamos um tapinha aqui, outro ali em nome da boa educação juvenil. Aceitamos uma cobertura midiática sensacionalista hoje, vendemos uma imagem desmoralizada de alguém amanhã, em nome da democratização da informação. Estamos no caminho certo? Tudo indica que não.

Se a estrutura familiar dos que se revelam atualmente tão insensíveis e perversos – como é também o caso do goleiro e de seus cúmplices – tivesse sido baseada em princípios fraternos, certamente estaríamos colhendo as consequências de um investimento feito lá atrás. Recebemos hoje o que cultivamos ontem e o que nossos filhos serão amanhã. Isso nada mais é do que o conjunto dos resultados que conseguimos construir.

Acreditar que ‘tapinhas’ (e não o diálogo) podem trabalhar como facilitadores da educação correta porque assim era feito antigamente só agravará a doença da revolta. O sintoma? Provavelmente, mais ‘Elizas’ – vítimas da desestruturação familiar, da violência e da carência extrema – sofrerão.

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Jornalista, Curitiba, PR