O Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou ontem, por unanimidade, a necessidade de autorização prévia de personagens e herdeiros para a publicação de biografias. Ao julgar um processo da Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel), os ministros concluíram que a exigência fere a liberdade de expressão e o direito à informação.
A Anel questionou os artigos 20 e 21 do Código Civil, segundo os quais personagens – mesmo aqueles secundários – ou seus familiares, no caso de pessoas já mortas, precisam dar consentimento prévio a um autor para que sejam retratadas em uma obra escrita ou audiovisual. Os artigos também admitem que a divulgação de um livro ou filme seja proibida caso o biografado se sinta prejudicado.
A ministra Cármen Lúcia, relatora do caso, concordou com a Anel e liberou a publicação de biografias não autorizadas, sendo acompanhada pelos outros nove presentes à sessão – apenas Teori Zavascki estava ausente.
“A liberdade de expressão não é garantia de verdade nem justiça, é garantia de democracia. Liberá-la pode envolver ter que conviver com injustiça ou inverdade em algumas ocasiões”, ressaltou o ministro Luís Roberto Barroso. “Na medida em que cresce a notoriedade da pessoa, diminui sua reserva de privacidade”, concordou Luiz Fux. Marco Aurélio acrescentou: “O homem público passa a ser um verdadeiro livro aberto.”
A decisão também deixou claro que personalidades prejudicadas por uma obra poderão recorrer ao Judiciário para pedir indenização. Outra conclusão é que não é possível impedir, a priori, a divulgação de uma obra. Mas os ministros não chegaram a um consenso quanto às situações que podem gerar pedidos de retirada de livros ou filmes já em circulação.
Inicialmente, em seu voto, Cármen Lúcia se posicionou de forma contrária a essa possibilidade. “O recolhimento de obras, mesmo após a divulgação, é censura judicial. A transgressão haverá de se reparar mediante indenização, nunca por censura prévia ou a posteriori. Cala a boca já morreu, é a Constituição brasileira que garante”, enfatizou.
Mas os ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski divergiram. “Haverá casos em que poderá haver até mesmo justificativa de uma decisão judicial que suste uma publicação. Mas não cabe tomar essa decisão a priori”, disse Mendes. “Abusos, excessos, inverdades manifestas, o uso de imagens para fins ilícitos poderão sempre ser tutelados pelo Judiciário”, continuou Toffoli. Lewandowski lembrou que as biografias também são divulgadas pela internet – e reclamou que é vítima de perfis falsos no Facebook.
Após as discussões, Cármen Lúcia voltou atrás e disse que seu voto só afasta a necessidade de aval prévio para publicar biografias, sem entrar nas formas em que o Judiciário poderá agir.
Barroso recomendou uma “autocontenção quase absoluta” dos juízes para só intervir em situações excepcionais – como “ilicitude na obtenção de informação, mentira deliberada ou gravidade insuperável”. Ele também citou que abusos devem ser motivo de retratação, direito de resposta, indenização e, em casos extremos, responsabilização penal. “Para mim a ideia de apreensão de uma obra é aterradora. Só admitiria em situações extremas”, disse.
Com a decisão do Supremo, decisões judiciais que retirarem uma obra de circulação poderão ser contestadas diretamente no STF, por meio de uma reclamação. Segundo Barroso, a tendência da Corte é garantir a liberdade de expressão. Diversas entidades participaram do julgamento como parte interessada – entre elas o Instituto Amigo, criado por Roberto Carlos, que defendeu a possibilidade de pedir ao Judiciário a retirada de circulação, a Academia Brasileira de Letras, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Presente à sessão, o escritor Paulo Cesar de Araújo, autor da biografia “Roberto Carlos em detalhes”, comemorou o resultado. Ele disse que o livro voltará às vendas atualizado – a obra foi publicada em 2006 e retirada de circulação em abril de 2007, após disputa judicial movida pelo cantor.
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Maíra Magro, do Valor Econômico