Está aberta a temporada de debates sobre violência e tráfico de drogas. Em pauta: maconha, cocaína, crack, redução da maioridade penal e a visita de Bush ao Brasil. Manchete de O Globo de segunda-feira (05/03) destaca instituição cujos membros estão sendo cada vez mais arrolados entre os indivíduos de má reputação: ‘Alerj: 55% dos deputados respondem a processos’. A matéria informa que correm nos tribunais 91 ações contra mais da metade dos deputados eleitos para a Alerj (Assembléia Legislativa do estado do Rio de Janeiro): 19% envolvidos em processos criminais; 17%, eleitorais. O restante tramita por varas cíveis.
O Jornal do Brasil (5/3) publicou uma notinha sobre uma chacina ocorrida em Nova Iguaçu, no final de semana. Cinco mortos. A matança ocorreu durante uma festa de aniversário de uma criança da comunidade Grama, num CIEP da região. Em O Globo, apesar da chamada na primeira página, a matéria é menor que boa parte das notas de falecimento pagas. E não há necessidade de o leitor ir buscar as ‘reportagens’ desses jornais para se informar sobre a tragédia, pois elas não tratam mais do que já falei. Quer dizer, O Globo informa, logo na abertura do texto, que ‘segundo investigação, um dos mortos, Rafael Gomes Pereira, de 22 anos, tinha sido autuado por tráfico de drogas na 6ª DP (Cidade Nova)’. Talvez quando ainda era adolescente, não há informação precisa. E nisso se concentram as ‘reportagens’. Na mesma edição do JB, a que mandou seu tijolinho sobre a chacina de Nova Iguaçu, uma missa em homenagem aos franceses chacinados ganhou meia página.
Oito sujeitos invadem um CIEP, matam cinco pessoas e a investigação chega a uma informação sobre o passado de uma das vítimas.
Uma criança é arrastada pelas ruas do subúrbio do Rio; 18 horas depois, os bandidos são todos grampeados. Mais uma semana, e o inquérito está concluído.
No primeiro caso, a imprensa se limita a contar os mortos e, sutilmente, apontar uma das vítimas como culpada de ter sido assassinada. Ou, talvez, de ter envolvido os outros fuzilados.
No caso que virou bandeira para a redução da maioridade penal, o da criança trucidada, os noticiários careciam de espaço para tratar do assunto. Semanas elogiando a trabalho da polícia e chorando a dor da família enlutada. O caso foi parar até na novela das oito.
Cinco pessoas massacradas. Muito sangue no aniversário de uma criança. Nada de ‘comoção geral’.
Comunidades virtuais
Sérgio Cabral, governador do Estado do Rio de Janeiro, nas últimas semanas vem fazendo declarações favoráveis à legalização da produção, comércio e consumo das drogas leves, como, por exemplo, a cannabis sativa, a nossa popular maconha (êpa!, isso é só ‘mod’dizê’, como se fala lá em Minas).
Sobre a conduta de porte de drogas para uso pessoal, a legislação já isenta o consumidor da pena de privação de liberdade. A Lei 11.343/2006, art. 28, dispõe: ‘Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. § 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.’
Quer dizer: portar drogas para consumo pessoal (até mesmo cultivar um canteirinho doméstico de maconha) deixou de ser considerado um ato criminoso, porém mantiveram-se algumas características de ‘ilícito’, sujeitando o ‘infrator’ ao cumprimento de medidas judicialmente impostas. Esta é mais uma norma sui generis, entre as peculiaridades que se pode verificar em nossas legislações. Coisas da atipicidade que se tornam cada vez mais freqüentes quando se buscam soluções para problemas crônicos que envolvem, indiscriminadamente, indivíduos dos mais diferentes estratos sociais.
Na internet, especialmente no Orkut, pode-se observar que o debate sobre a legalização das drogas, principalmente da maconha, tem sido desenvolvido em comunidades de categorias diversas: alunos, escolas, política, meio ambiente, saúde, religião e tantas outras. Mas, ao que tudo indica, os meio de comunicação de massa torcem o nariz para o Orkut.
Só falam dessa rede de relacionamento, que hoje conta com 45 milhões de usuários (dizem que cerca de 90% seriam brasileiros) quando se trata de apontar os ‘problemas’ causados por grupos que abrem páginas favoráveis ao racismo, pedofilia e apologia ao crime em geral. Geralmente são comunidades virtuais formadas por pessoas que criam falsos perfis, mas que são imediatamente denunciadas pelos próprios orkuteiros, que querem preservar o site mantido pelo Google.
Alta rotatividade
Muitos são os tópicos abertos no Orkut com o propósito de debater a questão da legalização ou não das drogas. Algumas pessoas, mesmo contrárias à medida, participam seriamente das discussões, outras nem tanto.
Abri tópico em algumas comunidades utilizando o mesmo texto, intitulado ‘Sua cannabis é um esterco? Legalização já!’ Muita gente está contribuindo com suas argumentações. Identifiquei alguns que, inicialmente, se posicionaram contra a legalização da maconha; entretanto, diante de tantos bons argumentos a favor, passaram a admitir a medida. Claro, sob algumas condições, como o rigoroso controle da produção e distribuição.
Quem consome drogas no Brasil? Isso mesmo: indivíduos de todas as classes sociais. Em festas do high society rola serviço vip: cocada pura servida em bandejas de prata; na favela, só batizada com pó de mármore. Em algumas universidades, pode-se obter maconha razoavelmente limpa; mas, nas escolas públicas, só com esterco de vaca.
O cultivo (em plantações extensas), os laboratórios clandestinos e o tráfico de drogas continuam submetidos às prescrições da lei penal.
O governador Sérgio Cabral argumenta que a repressão ao tráfico de drogas causa muito mais problemas de segurança pública que a distribuição legal, sob controle de órgãos competentes. Entre seus argumentos pela legalização das drogas leves, ele destaca o paralelo tráfico de armas que alimenta as bocas.
A imprensa, em geral, tem-se limitado a publicar as declarações do governador. Alguns poucos colunistas arriscam tímidos palpites. Isso nos jornais impressos, pois a televisão, veículo que alcança o grande público, parece que ainda não se deu conta de que este é um assunto importante. Nem mesmo Manoel Carlos, que costuma surfar em ondas populares, acrescentou o tema à colcha de retalhos que intitulou de Páginas da vida.
Mas eu creio que o governador do Estado do Rio tenha certa razão. Há quem diga que, com a legalização das drogas leves, entre as quais se classifica a maconha, não aconteceria nenhuma mudança substancial no que se refere à violência provocada pelo tráfico de drogas. Para essas pessoas, as demais drogas continuariam alimentando as bocas.
Consideremos, porém, que, se um produto de alta rotatividade e largo consumo for retirado das prateleiras de um estabelecimento comercial, certamente provocará razoáveis prejuízos aos comerciantes do setor. Imaginemos as padarias sendo obrigadas a suspender as vendas de frios e laticínios, ou refrigerantes e bebidas em geral. Provavelmente seriam obrigadas a aumentar o preço dos produtos de fabricação própria. Com isso, haveria uma significativa queda no consumo de pães, bolos e bolachas.
Efeitos indefinidos
No caso do tráfico, sem a maconha, as bocas teriam que aumentar o preço do pó. E muito! Ou barateá-lo excessivamente, para vender grandes quantidades, o que obrigaria a realização de transporte de cargas cada vez mais volumosas. Um problema sério para os ‘empresários’ do setor.
Durante a chamada Lei Seca, nos EUA, na década de 20, o consumo de bebida alcoólica aumentou em relação à época em que o goró era liberado. Muita gente morreu envenenada pelas bebidas produzidas na clandestinidade. Os norte-americanos também se intoxicaram com a ingestão de grandes quantidades de Biotônico Foutoura importado do Brasil. Al Capone gastou muita grana com a compra de armamento pesado. A guerra das máfias naquele período favoreceu as funerárias e o governo gastou muita verba com o pagamento de horas-extras aos médicos legistas.
A maioria dos jovens que conheci e que usam ou usavam maconha (lidar com esses jovens faz parte das minhas atividades profissionais) não se interessavam por cigarros nem bebida alcoólica. Os mais graves problemas que a maconha traz (sempre trouxe) estão relacionados com a ilegalidade: pessoas presas pelo porte de maconha, mortas na guerra do tráfico e questões similares. Pais de família que identificam um baseado entre os pertences dos filhos se desesperam ao perceber que ele está adquirindo aquilo por via ilegal. Essa é a angústia. Desesperam-se só de pensar por onde anda e com quem se está se relacionando o filho. Não é propriamente pelo baseado.
Mesmo se tratando apenas de um segmento do mercado de drogas ilícitas, a legalização do uso e da comercialização da maconha, sob rigoroso controle, provocaria algumas boas influências sobre a questão da segurança pública nos grandes centros urbanos do nosso país.
Entre os argumentos dos que são contrários à medida da legalização das drogas leves, existem os que alegam que os efeitos do uso da maconha ainda não estão bem definidos. Dizem que há controvérsias sobre os efeitos causados pelo uso da cannabis. Enquanto isso, as pessoas continuarão consumindo cocaína misturada a pó de mármore e fumando maconha misturada com esterco de gado.
Sua cannabis é um esterco?! E sua imprensa?
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Escritor, Rio de Janeiro, RJ