A notícia da semana na imprensa brasileira foi uma entrevista do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, ao jornal britânico Financial Times, da qual foram pinçadas especialmente as declarações sobre um projeto de autonomia do Banco Central e uma previsão mais otimista para o desempenho da economia neste ano, de uma expectativa de 3,5% para possíveis 4%. De norte a sul do país, a partir dos grandes jornais do sudeste e das agências de notícias, o que se viu foi a velha e boa prática da chamada ‘repercussão’.
Palocci disse muito mais. Declarou, por exemplo, que o governo pretende mexer ainda em dois vespeiros políticos: o sistema sindical e a legislação trabalhista, mas os destaques da mídia nacional conduziram para o terreno mais corriqueiro de um eventual posicionamento de Palocci em rota de colisão com o ministro da Casa Civil, José Dirceu.
No mesmo dia (sexta, 16/7), uma centena de militantes da Central Única dos Trabalhadores queimava bandeira e exigia a ampliação dos direitos trabalhistas, entre os quais se destacava a proposta de redução da jornada de trabalho sem diminuição dos salários.
Explicar, alegar
A imprensa escolhe o que acha mais relevante, e isso é da essência do negócio, mas chama a atenção o fato de ter sido necessário um correspondente do Financial Times para levar o ministro a explicitar opiniões e projetos controversos, que, de resto, já havia defendido em mais de uma ocasião nos últimos seis meses. Como se a mídia nacional não fosse capaz de fazer ao ministro as mesmas perguntas que ele, abertamente, respondeu ao jornalista Raymond Colitt, ou como se precisasse do aval do jornal britânico para ser levada a sério.
Afora certo ranço de provincianismo, observe-se que nenhum dos grandes jornais se deu o trabalho de lembrar ao prezado leitor como funciona de fato o Banco Central. Nesse sentido, obrou bem a rádio CBN, que levou ao ar extensa entrevista com um economista, que, aliás, estranhava o barulho em torno da reportagem do FT, lembrando que o BC tem ampla autonomia e é regido por metas, sob controle do Senado. O que o ministro anunciou, e foi destacado por Colitt, é que o governo pretende institucionalizar essa autonomia – intenção que, segundo Palocci, obviamente vai gerar controvérsia.
Certas sutilezas do jornalismo normalmente escapam do leitor menos atento, ou daqueles que nunca tiveram a experiência de participar de decisões de edição. O noticiário sobre as campanhas eleitorais, por exemplo, é um amplo campo de estudos para quem se interessa em conhecer o perfil das cabeças coroadas que regem as redações. A simples escolha de um verbo pode induzir a uma compreensão específica de determinado fato. ‘Os amigos explicam, os inimigos alegam’, costumava dizer um antigo editor da Folha de S.Paulo.
No fundo, no fundo
No caso da repercussão da entrevista ao Financial Times, Palocci foi de certa forma referendado por comentários colhidos entre economistas e empresários e em seguida apresentado como paradigma de uma das tendências em que, segundo a mídia nacional, o governo Lula está irremediavelmente dividido. Sua opinião sobre a autonomia do BC foi confrontada com a notícia, datada do mesmo dia 16, de que o presidente da República estaria ampliando os poderes do ministro José Dirceu – que, no entendimento dos grandes jornais, é a outra face do abismo em que estaria dividido o governo – ao criar a Câmara de Política de Desenvolvimento Econômico.
O que se apresenta como resíduo, portanto, para o leitor, é que o ministro Palocci quer a autonomia do Banco Central e defende outras medidas no sentido de consolidar as mudanças institucionais em curso; e que seu opositor no governo, José Dirceu, joga para as arquibancadas, insensível às conseqüências de suas escolhas populistas. Como todo jornalista sabe que nem a economia é uma ciência exata, nem a política um jogo com tempo marcado para acabar, é lícito observar que, na média, a imprensa brasileira atua com duas premissas básicas: é preciso preservar no governo Lula o que agrada aos núcleos de decisão da mídia sem, no entanto, deixar que o partido do presidente se beneficie de eventuais triunfos do governo.
O noticiário da semana, no arco que vai de uma entrevista do ministro da Fazenda a uma inexpressiva manifestação de minguados cem militantes da CUT, abre aos olhos dos observadores a realidade de uma imprensa que ainda se considera o sal da terra. Sutilezas nem tão sutis hão de rechear nossas páginas diárias antes que um editorial absolutamente honesto nos venha dizer que, no fundo, no fundo, o que os donos da mídia nacional mais gostariam de ver era um governo tão bem-sucedido que parecesse fracassado.
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Jornalista