Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Tentando prever o futuro por seu passado

O massacre de crianças e adolescentes na escola de Realengo em sete de abril de 2011 colocou o Brasil entre os relativamente poucos países em que já ocorreram assassinatos em massa ou massacres (mass murders) em estabelecimentos escolares nos últimos 98 anos (1913-2011). Cotejando a lista desses 17 países, parece que nada emerge para generalizações e determinação de fatores comuns, o que, segundo a disciplina de ‘análise criminal’, seriam os padrões e tendências da modalidade delitiva em exame.

A lista de massacres similares ao de Realengo, ocorridos entre 1913 e 2011, aponta uma incidência maior de casos em cinco países: EUA/14 casos, China/9 casos, Alemanha/6 casos, Canadá/3 casos e Finlândia/2 casos. Mas não é possível, apenas com isso, estabelecer generalizações ou determinar ‘padrões’, objetivo primordial da ‘análise criminal’, disciplina instrumental para a prevenção do crime e da violência. Igual acontece, ao considerar os outros 12 locais com um único caso de incidência de massacres escolares (em ordem alfabética): Azerbaijão, Bélgica, Brasil (desde sete de abril de 2011), Bulgária, Guatemala, Hong Kong, Iêmen, Israel, Japão, Polônia, Reino Unido e Rússia.

Tanto os cinco países de maior incidência do fenômeno, como todos os 17 países juntos (os cinco de maior incidência e os 12 com um único caso), não guardam maior homogeneidade, quer seja política, cultural ou econômica. Conjuntamente, o grupo abrange todas as maiores religiões do mundo, estão situados em quase todos os continentes (com exceção da África), exibem todos os possíveis níveis socioeconômicos, falando todas as chamadas ‘línguas de trabalho’ da ONU (chinês, espanhol, francês, inglês e russo). Enfim, esses 17 países não têm maior afinidade que não seja a tragédia dos assassinatos em massa, agora também compartilhada com o Brasil.

Armas de fogo

O sempre arguto e instigante Alberto Dines, em ‘Aquele abraço‘ (Diário de São Paulo, 9/4/2011), coloca o leitor brasileiro, perplexo com o massacre de Realengo, em ‘perplexidade globalizada’. Ele aponta: ‘Nos empurra para a mesma perplexidade que atormenta a sociedade americana – onde a mania começou –, também a francesa, alemã, finlandesa e chinesa, onde os seus maníacos logo a adotaram.’

Dines tem razão. O único padrão detectável em massacres de estudantes, crianças e adolescentes, em diferentes países, é o fato de parecer ‘obra de maníacos’. Maníacos de qualquer religião, continente, nível socioeconômico, língua etc. Isso certamente sugere uma situação bastante intrigante, em termos da busca de explicação para um fenômeno extremo do crime e da violência, capaz de comover, chocar, provocar pesar e até mesmo inspirar medo, muito medo, mesmo nos mais empedernidos com a ‘violência de sempre’…

Na ‘busca de explicação’ dos crimes cometidos por W.O. (talvez o nome dele não mereça menção explícita…) contra as meninas e os meninos da escola de Realengo, parecem mais salientes dois aspectos, (i) os indicadores prévios de patologias comportamentais do criminoso e (ii) o acesso que ele teria tido aos instrumentos dos crimes – armas de fogo – utilizados para o cometimento de seus múltiplos assassinatos.

Mas não é novidade que os homicídios ocorridos no Brasil tenham nas armas de fogo seu instrumento principal. O 6º Relatório Global sobre Crime e Justiça já apontava esse fato nos idos de 1999. Ou seja, é de mais de uma década, ao menos, um dos estudos internacionais que apontam que o Brasil sustenta uma alta taxa de homicídios por conta das armas de fogo. Conter a posse e uso de armas de fogo por delinquentes deveria ser uma prioridade, independente da tragédia de 2011, desde muito tempo atrás. Mas, ao que parece, o rigor do Estatuto do Desarmamento não atingiu os delinquentes como anunciado, ainda que o mote original siga sendo repetido e até mesmo anunciadas novas medidas restritivas a serem adotadas com um plebiscito sobre a questão.

Conclusões simplificadoras

O que não é bem conhecido e discutido no Brasil é a questão das patologias de comportamento, em sua interação dinâmica com o crime, que podem favorecer as ações de gente como W.O. na consecução de ‘homicídios de massa’. Mas será possível, ao identificar ‘padrões comportamentais’, fruto de estudos diagnósticos com homicidas de massa de 17 países, chegar a ‘prognósticos indicativos’ de ‘homicidas de massa’, apontando com alguma precisão os mais prováveis futuros autores de crimes ainda não cometidos? Parece que não.

Richard McNally, docente de Psicologia em Harvard e autor da obra What is mental illness (O que é a doença mental) sugere com seus estudos que ‘psiquiatras não podem prever homicidas de massa’. A reflexão induzida dos ensinamentos de McNally parece bastante própria quando de eventos violentos como os de Realengo. Considerando o que o especialista sugere, tragédias do gênero fazem com que ‘cassemos’ por sinais de aviso em gente doente mental, protagonistas de ocorrências como a de Realengo, depois da tragédia, muito embora esse tipo de incidente pareça impossível de ser previsto e evitada.

De fato, nos dias que se seguiram aos acontecimentos em Realengo, um verdadeiro frenesi midiático se estabeleceu sobre o passado de W.O., como que visando a identificar sinais previsores do massacre, explicando assim esse caso específico e possibilitando intervenções preventivas de casos futuros. Mas não parece possível ‘aprender com o passado do futuro’…

A busca desses ‘sinais preventivos’ pela mídia revela uma tendência natural, quase obsessiva, de ‘dar sentido’ a acontecimentos extremamente chocantes. Os problemas dessa ‘busca de explicações’, entretanto, estão relacionados com os meandros e contradições da mente humana diante da violência extrema, fazendo parecer fácil chegar a conclusões simplificadoras de fenômenos complexos e raros, como é o caso. Uma das indicações disso, em outra dimensão do problema, foi rapidamente racionalizar e deslocar a questão do massacre de Realengo para o antigo problema do uso de armas de fogos para cometimento de homicídios no Brasil (quais homicídios, cometidos por quem e com que armas?)…

Indivíduos explicitamente desviantes

A literatura sobre massacres em escolas refere o chamado ‘viés retrospectivo’. Ele é fruto de um processo que começa com a investigação minuciosa do passado de um assassino de massa (caso das cartas, gravações e depoimentos de amigos e conhecidos de W.O. e que paulatinamente vão sendo revelados). Ao juntar todas as peças desse quebra-cabeça macabro, parece inevitável o desfecho final. Frases comuns em tal situação ‘pós-fato’ incluem ‘Por que ninguém viu isso e fez alguma coisa’? E parece que a súbita preocupação com armas de fogo é coerente com essa tendência de ‘por a culpa em algo ou alguém’… Mas, como vai citado em matéria sobre o tema [‘Por que os psiquiatras não podem prever assassinos em massa’ (Why psychiatrists can’t predict mass murderers)], se prever as razões do que já ocorreu parece fácil, prever as razões do que ainda vai ocorrer no futuro é muito difícil.

A reflexão sobre o massacre de Realengo abrange aspectos comuns a outros tipos de manifestação de violência extrema, caso dos ‘assassinos seriais’ (serial killers) e terroristas. Todas as três categorias de violência ainda são pouco estudadas no Brasil, ainda que das duas primeiras existam expressões confirmadas e intensamente noticiadas pela mídia do país (nos dois casos, de Realengo e do ‘Maníaco do Parque’, respectivamente). A questão do terrorismo e dos atores com ele envolvidos, parece que também passará a ser objeto de alguma atenção, considerando o fato de que o Brasil será palco de grandes eventos internacionais, em 2014 e 2016, circunstâncias propícias ao encontro entre potenciais terroristas e vítimas habituais do terror. Novamente remontando à disciplina de análise criminal, a ela interessam os perfis psicológicos típicos de perpetradores de ações de violência extrema no passado. É a busca de ‘fatores preditivos’, no afã de assim possibilitar iniciativas na área de prevenção e controle. Mas essa análise não se basta com fatos, dependendo principalmente de critérios e juízos…

A grande questão, entretanto, não se resume a identificar os perfis daqueles que se assemelham aos agentes da violência extrema já consumada. A questão crucial é o grau de probabilidade de que potenciais perpetradores de violência extrema efetivamente cometam ações violentas no presente ou no futuro vis-à-vis diagnósticos feitos no passado. Em Por que os psiquiatras não podem prever assassinos em massa, fica posto: ‘Os fatores preditivos são invariavelmente mais comuns do que o evento que se espera antever e casos de assassinatos em massa são extremamente raros.’ Ou seja, enquanto os assassinos de massa se enquadram no perfil correspondente, outras indivíduos, que também se enquadram no mesmo perfil, jamais irão cometer assassinatos em massa. A exemplo, em muitas comunidades existem indivíduos explicitamente desviantes (ao limite da esquizofrenia paranoide…), e por isso mesmo alvo de pilhérias e chacotas bem conhecidas, mas que jamais empreenderão ações delitivas.

‘De volta ao futuro’

Disso tudo decorrem dois riscos, em termos de prognósticos, tendo em conta diagnósticos corretos de comportamentos desviantes potencialmente expressos em crimes consumados de violência extrema: (i) os ‘falsos positivos’ e (ii) ‘falsos negativos’. No primeiro caso, são muitos os indivíduos que poderão ser injustamente rotulados diante de um diagnóstico que jamais será materializado no prognóstico correspondente da consecução de crimes como os de Realengo. Emerge daí, inclusive, a questão do preconceito e da estigmatização social (o equívoco produzirá dano ao próprio indivíduo, e não à sociedade); já no segundo caso, que são poucos e raros, mas existem, estão aqueles indivíduos que poderão ‘deixar de ser contidos previamente’ diante de um diagnóstico de desvio que será devidamente pareado com um prognóstico criminoso trágico no futuro (o equívoco produzindo sério dano para a sociedade).

Diferenciar precisamente entre ‘falsos positivos’ e ‘falsos negativos’ de ações delitivas futuras é uma impossibilidade para a ciência e para a segurança pública. Ainda não é possível estar ‘de volta ao futuro’ como sugere a ficção…

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Professor no Núcleo de Segurança Pública da Fundação Universa