Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Teoria da involução de uma espécie

Dizem que a esperteza, quando é muita, engole o dono. O que estamos vendo agora é que a esperteza está engolindo o Congresso Nacional. Um imenso bueiro se abriu sob os dois pilares de concreto do Senado e da Câmara, no centro da Praça dos Três Poderes, em Brasília. É um maremoto. A reputação das duas Casas vai naufragando.


A crise começou há cerca de 80 dias, com escândalos de variados naipes: celulares pagos pelo contribuinte cedidos a parentes de parlamentares, aluguéis de jatinhos, profusão de diretorias sem finalidades compreensíveis. Agora vem à tona a farra das passagens aéreas. O bueiro vai-se alargando numa agonia que parece não ter mais fim.


Não vivemos uma crise menor. Não se trata apenas de deslizes localizados que possam ser corrigidos pela adoção de novas regras, supostamente disciplinadoras. O desastre é mais vasto e mais devastador. Tem razão Dora Kramer quando escreveu, no Estado de S.Paulo, que ‘a crise é moral, de valores, de ausência de espírito público, de dissolução de princípios, de descaramento absoluto’ (‘Excelências sem fronteiras’, 22/4, pág. A6).


Há os parlamentares que cometeram atos que a todos nós envergonham, mas há também os que, cientes desde antes de comportamentos condenáveis dos colegas, preferiram se calar, num obsequioso silêncio corporativo. Entre uns e outros, os cidadãos se perguntam: mas, então, não há ninguém ali em quem possamos confiar? Será que os mesmos que se beneficiaram das imoralidades – ou os que fingiam não vê-las – serão capazes de fazer valer as tais medidas moralizantes?


Não faz sentido


Deu-se entre nós um curioso fenômeno: a involução ética do político profissional. O nosso sistema representativo, em lugar de aperfeiçoar e depurar a atividade parlamentar, logrou justamente o oposto. Uma perversa ‘seleção natural’ às avessas afastou da política os seres humanos incapazes de conviver com a mentira institucionalizada e privilegiou os mais truculentos, os mais dissimulados e os mais ambiciosos.


Reflexo de um tempo em que o vício da ganância foi convertido em virtude, a nossa política foi-se convertendo num trampolim para a ascensão social e para o alpinismo no poder. Um negócio lucrativo e nada asséptico. O ar que para uma pessoa normal é apenas irrespirável se tornou o perfume inebriante dos que se gabam de ter ‘casca grossa’. O eleitor vê-se assaltado pela sensação de que só sobrevivem no Congresso Nacional os que são aptos a confraternizar com toda forma de tapeação da cidadania. Com seus sorrisos de plástico, são eles os representantes do povo. Ao povo propriamente dito resta o desamparo.


No meio disso tudo, uma única instituição vem cumprindo o seu papel: a imprensa. Ela não tem sido meramente uma das melhores amigas da democracia: tem sido a única. Os caciques se queixam de uma campanha difamatória dos jornais contra o Parlamento. Chega a ser patético. Até onde eles pretendiam chegar com suas condutas inconfessáveis? Na verdade, a democracia, agora, só tem uma esperança: a abertura total das contas dos deputados e senadores. Só disso poderá surgir alguma solução. Aí é que entra a imprensa, cumprindo o seu dever. Quanto mais ela informar sobre isso, melhor. Quanto mais insistir, melhor.


A imprensa ainda tem muito a investigar nesse quadro de ironias sórdidas em que a inversão de valores atingiu o nível do inacreditável. A política deveria ser o prolongamento da ética, ou seja, a construção da virtude com vista ao bem comum. Foi por isso, entre outras razões, que Aristóteles divisou na política a realização da ética, assim como a medicina é a atividade que procura alcançar a saúde. Falar hoje, como temos falado, de uma política sem ética é o mesmo que falar numa medicina cujo bem maior não seja a saúde. Simplesmente não faz sentido. No entanto, é disso que estamos falando: uma política que, em termos lógicos, não tem sentido, pois dá sinais de ter-se divorciado de qualquer ideia de bem comum.


Reputação institucional


Há 2.400 anos, Sócrates, o pai da Filosofia, desafiado a dar provas de que dizia a verdade no julgamento que o sentenciou à morte, não hesitou: ‘O testemunho seguro de que é verdade o que vos digo, eu o dou: a minha pobreza’. Aos 70 anos de idade, ele sabia que sua vida dedicada ao saber e à causa pública não se tinha desvirtuado pela tentação do enriquecimento. Ele não fizera de sua projeção um negócio lucrativo. Por isso, afirmava a sua credibilidade. Que parlamentares hoje poderiam dizer a mesma coisa?


Há de haver alguns, por certo. Com esses nós esperamos contar agora. Que se manifestem. Que travem o bom combate. Que se insurjam contra a cultura estabelecida, a cultura da esperteza. Que rompam com o corporativismo do atraso. Uma ética não se faz apenas do caráter de cada um, mas da transformação dos costumes vigentes – e estes, agora, devem ser subvertidos, pois foram eles que promoveram a ‘seleção natural’ às avessas que elegeu o que há de pior no humano como requisito da ação política.


De onde virá a transformação dos velhos costumes? Eis aí uma questão dolorosa. É difícil acreditar que os parlamentares atualmente encastelados em seus mandatos tenham legitimidade para tão grande tarefa – esse é um desafio que teremos de enfrentar no próximo período, isso numa perspectiva otimista, ou seja, na perspectiva de que a sucessão de escândalos evolua para uma real superação dos hábitos que têm vigorado. Vamos aguardar os próximos lances.


De um jeito ou de outro, ou o Congresso Nacional se reinventa – e rápido – ou verá sua reputação institucional engolida pelo maremoto da esperteza. Que a imprensa continue a bater, pois vem batendo certo. E que os parlamentares dignos assumam o lugar que a sociedade espera deles.

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Jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP