Prédios inteiros lançados ao chão. Barcos ancorados no meio da cidade. Vítimas escondidas pelos escombros clamando por socorro. O cenário é de completa devastação. Com essa descrição o leitor pode pensar que as referências acima compõem um livro ou até mesmo um filme sobre a II Guerra Mundial. Mas é assim que os jornais de todo o mundo descrevem a fúria da natureza que atinge um Chile que ainda [até o fechamento desta reportagem] sofre com a destruição.
Para um leitor acostumado com manchetes impactantes sobre a revolta natureza da atualidade, talvez esse seja apenas ‘mais um caso’. Afinal, se for analisado o número de acidentes ambientais ocorridos nos últimos anos, talvez até o cidadão mais bem informado possa se perder entre os cálculos. E é baseado em situações como essas que as recorrentes discussões sobre a situação climática do planeta ocupam cada vez mais espaço nos noticiários. As catástrofes naturais ganham destaque não apenas pela frequência com que ocorrem, mas, principalmente, pelo tamanho dos estragos que deixam.
No entanto, em meio a essa torrente de informações, os veículos de comunicação têm se prendido a apenas noticiar os fatos e, com o passar do tempo, deixam no esquecimento as famílias e as localidades que sofreram com esses fenômenos da natureza. Além disso, não destacam se a região foi reconstruída ou se as comunidades atingidas contornaram a situação.
‘O que é uma pauta e o que é uma suíte’
O tsunami formado no oceano Índico em 2004, a passagem do furacão Katrina pela cidade de Nova Orleans, nos Estados Unidos, em 2005, a enchente que atingiu parte de Santa Catarina em 2008 e o terremoto no Haiti neste ano são episódios que ficaram na história. Apesar do corre-corre enfrentado pela imprensa diante do número de informações apuradas diariamente, a geógrafa Katy Algarte, do Observatório Sismológico da Universidade de Brasília, acredita que os jornalistas estão cada vez mais preocupados com o assunto. Para confirmar sua teoria, ela menciona os pequenos tremores que ocorreram na comunidade rural de Caraíbas, no município de Itacarambi, no norte de Minas Gerais, no ano de 2007, e que foi objeto de estudo do Observatório.
‘Quando aconteceu, a mídia foi lá e fez todo o papel dela e a gente gerou vários estudos. Mas nós sabemos que esses pontos só são retomados [pelos veículos de comunicação] quando acontecem outros terremotos’, explica antes de concluir seu raciocínio. ‘Um rapaz ligou esses dias dizendo que está fazendo uma reportagem para saber onde estão as pessoas que tiveram suas propriedades afetadas. A gente percebe que outras pessoas veem de um modo diferente.’
Mas, se existe esse olhar, nem todos o manifestam. Comparando com o que é divulgado, nem de longe a imprensa se preocupa em resgatar essas histórias. O importante é o factual, o aqui e o agora. É o que aponta o jornalista Dal Marcondes, diretor responsável pela revista digital Envolverde e presidente do instituto que leva o mesmo nome. ‘A questão [das enchentes] em SP parece que passou. A mídia não voltou lá pra ver o que a prefeitura fez com as famílias do Jardim Pantanal. A mídia tem que ter noção do que é uma pauta do dia e o que é uma suíte’, aponta.
Tsunami abafado porque poderia afetar o turismo
Marcondes, que tem larga experiência com o tema, também é editor no Brasil do jornal Terramérica, projeto ligado ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Para ele, se a imprensa retomasse a situação depois do ocorrido, o leitor perceberia que as tragédias trazem consequências e lições para a sociedade, além de fazê-la se preocupar em como prevenir os desastres. Isso se daria por meio de histórias de superação, compromisso, luta e reconstrução das vidas.
Em relação ao deslizamento de encostas, por exemplo, o jornalista alerta que na maioria das vezes pode haver uma ilegalidade no local da construção. ‘A mídia não cobre isso, mas a tragédia em si. Na hora da reconstrução, a mídia não vai lá para dizer o que está acontecendo, se vai ser reconstruído no mesmo lugar ou se irão mudar’, lembra.
Parte disso se deve ao fato da quantidade de eventos que ocorrem simultaneamente e que dificilmente permitem, principalmente aos grandes veículos, dedicar tempo para retomar os temas.
E quando se trata da complexidade dos fatos, as opiniões são unânimes. O ambientalista Tadeu Santos, coordenador da organização não-governamental (ONG) Sócios da Natureza, acredita que em muitos casos há exagero. ‘A mídia às vezes tira proveito da situação para aumentar o ibope e brinca com o sentimento humano. A mídia não está preparada para tratar esses assuntos’, dispara.
Segundo ele, a imprensa possui dois tipos de atuação quando a pauta se volta para os eventos climáticos. Uma é aumentar a dimensão dos acontecimentos para causar maior impressão. ‘É como uma criança que quer contar um fato para a mãe e o aumenta para impressioná-la’, exemplifica. O outro lado é reduzir os problemas. ‘Em Florianópolis, houve um tipo de tsunami no sul da ilha que foi abafado porque poderia afetar o turismo. Existe uma série de distorções para diminuir ou aumentar. Depende do interesse.’
213 milhões atingidas por catástrofes naturais
Com uma visão semelhante, o sociólogo Sérgio Abranches, comentarista de ecopolítica da rádio CBN, acredita que a mídia tem se preocupado muito mais com o sofrimento humano do que com o auxílio pós-catástrofes. ‘Você faz qualquer análise do noticiário e vê que a curva é alta quando o resgate e a tragédia acontecem, quando alguém salva a criança. Quando a manchete desaparece e não tem casos importantes, vai se rotinizando, o noticiário cai e aquele problema vai para o esquecimento’, frisa. Abranches toca no mesmo ponto levantado por Marcondes quando se refere à necessidade de se dar continuidade ao assunto depois que a ‘poeira baixou’.
Mas Abranches, que também é cientista político e pesquisador independente sobre a relação entre desenvolvimento econômico e meio ambiente, alerta para um erro importante que por vezes fica evidente na cobertura da mídia. Existe uma diferença significativa, mas pouco abordada entre dois termos: fenômeno e catástrofe. O fenômeno natural em si não é desastroso. A diferença está em como a sociedade vai encarar tal evento. Se o município ou mesmo o país estiver prevenido, com construções sólidas, para enfrentar tais manifestações da natureza, mesmo um terremoto de grandes dimensões terá consequências proporcionalmente menores do que um de pequena magnitude. O Chile, segundo ele, estava mais preparado que o Haiti, assim como o Japão, que já aprendeu a conviver com esse tipo de problema.
Por outro lado, a catástrofe natural é quando o fenômeno afeta a população, trazendo mortes e destruição em vários graus. Nesse caso, ele é, na verdade, não um desastre natural, mas um desastre social por causa do despreparo das populações. ‘A imprensa está acostumada a encarar o fenômeno como sendo um desastre. Ontem [7/3/2010], as chamadas do Estado de S. Paulo e da Folha de S.Paulo diziam que a chuva matava. Ela não mata, mas os deslizamentos, as enchentes, entre a conjugação da chuva e a falta de planejamento produzem mortes’, observa. ‘Hoje [8/3/2010], o Cotidiano [caderno de assuntos diversos da Folha] corrigiu dizendo que o deslizamento causado pela chuva causou as mortes.’
A questão é muito mais ampla. Abranches chama a atenção para a falta de políticas públicas que previnam, conscientizem e ajudem a amenizar as tragédias. O desastre, segundo ele, nasce da falta desse elemento e, claro, da atuação na imprensa nesse papel conscientizador. Para ele, voltar o foco para as consequências é uma forma mais fácil de se produzir notícias. E deixa claro que os desastres não são causados pela natureza, mas pela má organização social para com ela.
O Relatório Mundial sobre Desastres [disponível aqui] referente ao ano de 2008 e divulgado pela International Federation of Red Cross and Red Crescent Societies, relata que só naquele ano 213 milhões de pessoas foram atingidas por catástrofes naturais. No mesmo ano, 225.842 pessoas morreram em decorrência do ciclone Nargis, que atingiu Myanmar e do terremoto de Sichuan, na China.
A conscientização para o amanhã
Diante desse quadro, os especialistas apontam que o número de catástrofes deve aumentar nos próximos anos. A mídia, no entanto, tem uma parcela significativa na educação de suas sociedades para criar o senso de prevenção e fazer com que o povo exija medidas de seus políticos.
É importante, também, que os jornalistas que cobrem essa área estejam cada vez mais familiarizados com o tema e busquem especialização. ‘Às vezes não tem atores, personagens, as comunidades locais não são ouvidas. Só mostram um lado, o mais oficial. A cobertura fica desequilibrada. Quem cobre essa área precisa estar mais informado. Às vezes a pessoa não estuda o assunto, não faz links anteriores. E são assuntos complexos que precisam de mais atenção’, sublinha a jornalista Clarissa Presotti, mestre em Desenvolvimento Sustentável pela UnB e assessora estratégica em meio ambiente na Elabore Consultoria, em Brasília.
No que diz respeito à forma como a população deve encarar os próximos eventos, Abranches aponta que a única saída é, em primeiro lugar, acabar com o mito de que o Brasil é um país que não tem vulnerabilidade a desastres. O outro é plantar a conscientização para o amanhã. Assim como acontece em outras regiões do mundo, como Estados Unidos, Japão e Europa, a mídia deve cobrar das autoridades respostas sobre como está a prevenção desses desastres e que medidas serão tomadas caso haja estragos. ‘Temos uma cultura de política pública e sociedade de reparar os danos de fenômenos previsíveis que poderíamos prevenir’, alfineta.
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Estudante do curso de Jornalismo do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp), em Engenheiro Coelho, SP