É proibido proibir o otimismo. A mídia verde-amarela tem explorado ao máximo esse imperativo durante a Copa. Vale tudo para alimentar o big brother da seleção: das bolhas de Ronaldo ao repertório nos ipods dos jogadores, da performance insólita do presidente-repórter ao elástico-estilingue que acertou os glúteos de Ronaldinho Gaúcho. O trivial ligeiro preenche, com raras exceções, todo o espaço das análises esportivas.
Mas não soa natural que o ufanismo da pátria de chuteiras dite as cartas para o jornalismo esportivo? Quem não quer ver a seleção brasileira se sagrar hexacampeã? E como é que o jornalista-torcedor pode, no calor da hora, se dissociar do torcedor-jornalista? Parece uma sinuca de bico? Não é. Afinal de contas, onde é que ficam o contraditório e a imparcialidade?
O problema é quando o clima da Copa contamina até publicações sóbrias como a revista britânica The Economist. No artigo ‘Let the games begin’ (8/6), o semanário faz a louvação da competição, decretando sua superioridade em relação aos jogos olímpicos:
‘Setenta anos depois que Jesse Owens correu para a vitória nos Jogos Olímpicos de 1936, o estádio olímpico de Berlim é mais uma vez o centro do mundo esportivo. A Copa do Mundo, que começa esta semana, chegará ao clímax com a final no reformado estádio olímpico de Berlim, no próximo mês’. Até esta altura, tudo bem. O problema é o que a revista afirma em seguida.
Neutralidade
‘Felizmente, os sinais políticos que fizeram das Olimpíadas de Berlim um acontecimento sinistro estão completamente ausentes. Não apenas porque a Alemanha é agora um país democrático. Mas também porque a Copa do Mundo, diferentemente das Olimpíadas, é difícil de manipular para objetivos políticos’.
Tem ares de uma nota extraída de um press-release da Fifa. Porém, vem de um país onde recentemente foi publicado o livro Foul! The secret world of Fifa: bribes, vote rigging and ticket scandals, que traz graves denúncias contra o presidente da instituição, o suíço Joseph Blatter. O livro, escrito pelo jornalista investigativo e esportivo inglês Andrew Jennings, relata diversas maracutaias de Blatter para se eleger e se manter à frente da Fifa: subornos, compra de ingressos e votos, como consta no título.
The Economist acredita em neutralidade? Bem, não chame a revista para sentar na mesma arquibancada com Juca Kfouri. Em entrevista concedida à Caros Amigos (edição de junho), Juca põe em dúvida a lisura do torneio, acreditando que o Brasil não levará o hexa, por causa de ‘direcionamentos’: ‘(…) Você tem alguma dúvida? Tem alguma dúvida? O Brasil, pra ser hexacampeão, terá de ganhar de adversários fortes e da arbitragem. Pode acontecer. Por exemplo, pega a Copa de 94. Sabe como é que faz isso? Isso não se faz de maneira descarada. (…).
Inversão
E como é que foi feito? Juca explica: ‘Na Copa de 94, que o Brasil ganhou, o jogo que era visto como a final antecipada foi jogado nas quartas-de-final: Brasil e Holanda, em Dallas. Duas baitas seleções. O Brasil não tinha tomado um gol até então, melhor defesa da Copa. Sabe de onde era o árbitro que apitou aquele jogo? Da Costa Rica. (…) Aquela era uma Copa que estava escrito: se o Brasil seguisse a trilha que se imaginava que poderia seguir, como seguiu, só encontraria os grandes papões lá na frente, lá na final. E acabou encontrando a Itália. (…).
Mas The Economist segue apostando em seu otimismo. Em contraste com os jogos olímpicos, passíveis de manipulação (ilustrada pela alternância nos pódios ora dos Estados Unidos, ora da União Soviética, durante a Guerra Fria), a Copa do Mundo, acredita a revista, tem a sua própria hierarquia, ‘que é agradavelmente divorciada de uma ordem global’. Nesta ordem, o Brasil ocuparia um superpoder exclusivo, segundo a revista. Abaixo estariam os italianos e franceses que, mesmo em declínio no mundo, se mantêm como grandes competidores no futebol. Há seleções emergentes vindas da Ásia e da África. Já a seleção americana, que representa a nação mais poderosa do planeta, levou um time forte para a Copa, mas não tem chances de vencê-la. E por último tem-se a China, que sequer conseguiu se classificar.
Não é apenas a inversão da tradicional geografia do poder que torna a Copa um fenômeno único e superior às Olimpíadas, segundo a revista britânica. Nenhum governo, por mais dotado que seja de recursos, pode criar uma seleção campeã do mundo. Bem, abrem-se duas exceções para essa influência política: o selecionado italiano na Copa de 1930 e o empurrão que o time argentino recebeu do governo militar, em 1978. Contudo, isto não funcionaria hoje em dia por ordem de um ditador – nem para imitar o estilo do Brasil, nem para vencê-lo, supõe a revista.
Apoio abalizado
Outro ponto favorável ao futebol, e à Copa, de acordo com a revista, é que, diferente dos atletas olímpicos, que podem atingir grandes performances com base unicamente na força atlética, o futebol precisa de criatividade e estilo. E mesmo as drogas, cujo uso vez por outra recai sobre algum campeão olímpico, não servem para os jogadores. Bem, que fale uma vez mais Juca Kfouri, na entrevista citada: ‘É o que eu digo, pra segurar a cabeça, rola. Rola maconha, rola cocaína’. É o caso de questionar: em que ideal de pureza foi a revista se inspirar para conferir tão nobres princípios ao futebol?
Há ainda um mérito final que pode ser atribuído a uma Copa do Mundo, na ótica da revista. Nela, uma equipe se sobressai no último minuto e vence um adversário favorito. Pelo menos aconteceu assim na Copa de 1966, quando a Coréia do Norte derrotou a Itália, e em 2002, quando o Senegal venceu a França. ‘É esta capacidade de surpreender que faz da Copa do Mundo um acontecimento tão interessante’, crê a revista. Isto é o que torna uma Copa ‘o maior evento esportivo do mundo’.
Well, The Economist quis bancar a publicação antenada e expert no assunto, para não ficar de fora do oba-oba promovido pela Copa. E não perdeu a oportunidade de fazer uma média com o favoritismo dos brasileiros. Com esse apoio tão abalizado, o que nos resta senão esperar para pôr a mão no hexa?
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Jornalista, editor do Balaio de Notícias