Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Toda TV é pública

A prometida TV Brasil vai nascer dentro de um sistema de radiodifusão semi-público, ou seja, suportado por prefeituras e governos estaduais, mas explorado de forma privada por mais de 15 redes nacionais de televisão. Cinco delas (Globo, Record, SBT, Bandeirantes e Rede TV!) valem-se majoritariamente da estrutura montada ainda nos idos da ditadura militar, quando interessava ao projeto de integração nacional expandir os sinais de TV por todo o Brasil, para levar o conteúdo de sua programação aos mais distantes rincões.


O sistema funciona basicamente assim: uma novela, por exemplo, produzida por uma geradora situada no eixo Rio-São Paulo é transmitida via satélite para as emissoras regionais afiliadas, geralmente localizadas em uma capital de estado. De lá, o sinal é reforçado e segue para o interior por meio de um sistema de retransmissão e repetição de televisão (RTV) do próprio grupo regional, de prefeituras ou de fundações ligadas aos governos estaduais. Nesta última parte do trajeto, é proibida por lei a inserção de programação local.


Sem este apoio fundamental do Estado, as redes não conseguiriam fazer com que suas programações se nacionalizassem, ou seja, atingissem 98% do território nacional como ocorre hoje no Brasil. Mais do que isso, quase não teriam poder de negociação com os anunciantes uma vez que a audiência seria reduzida substancialmente. Sem falar na perda de poder político.


Negócio vantajoso


Um estudo realizado pelo Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom) revela claramente como se dá este processo de dominação consentida pelos municípios. Das 9.927 estações retransmissoras de TV do país, um terço, ou 3.270, são mantidas por prefeituras. Deste total, mais de 40% das RTVs reproduzem a programação da Rede Globo.


A situação é tão inusitada que redes estatais como a TV Cultura de São Paulo precisam manter com orçamento próprio 201 RTVs, enquanto a Globo gerencia diretamente apenas 3 estações retransmissoras. Não é preciso muito tino comercial para entender como este sistema torna o negócio da televisão vantajoso apenas para um lado. O telespectador, que paga para ver televisão por meio dos impostos e dos produtos que consome, acaba pagando novamente por meio dos tributos municipais que ajudam a manter a estação retransmissora.


Fogo cruzado


Além da drenagem de recursos orçamentários do município, que arca com os custos de implantação e manutenção da torre e da antena, este sistema vertical e concentrado submete a população da maior parte das cidades brasileiras a um regime de informação minguado. Como mostra o IBGE, a maior parte dos municípios brasileiros tem à sua disposição apenas a programação de duas ou três redes nacionais, sem direito a programação local. Talvez esta seja a lacuna que uma rede nacional de televisão pública pudesse vir a sanar. Por, em tese, possuir uma relação menos autoritária com suas afiliadas e não perseguir o lucro, uma grande emissora pública nacional teria mais condições de municipalizar a comunicação, investindo fortemente na produção independente e regional.


Como se viu, estrutura para isso existe. Basta vontade política para fazer acontecer. Em meio ao fogo cruzado do debate sobre a TV pública, governo e empresas ainda não disseram como pretendem solucionar esta relação mal resolvida entre recursos públicos e exploração privada. Enquanto isso, a população sabe quem é o galã da novela das nove, mas continua ignorando uma imensa cratera que existe na rua ao lado de onde mora.

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Jornalista, coordenador de projetos do Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação e membro eleito do Conselho Deliberativo da Fundação Cultural Piratini Rádio e Televisão (mantenedora das emissoras TVE-RS e FM Cultura)