‘Mercador e pirata foram por um longo período a mesma coisa. Mesmo hoje a moralidade mercantil é apenas um refinamento da moralidade corsária.’
A sentença em tradução livre é extraída de um texto do filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) e quem o citou na semana passada – sem dar a indicação bibliográfica – foi o semanário The Economist, baluarte da livre iniciativa e da economia de mercado (edição de 19/7/2008, pág. 23).
Nietzsche é visto por muitos como um exagerado, a revista inglesa apresenta-se como racional: serve-se da epígrafe para mostrar que empresas podem tirar proveito da pirataria.
Uma avaliação sobre os escândalos decorrentes da exacerbação do capitalismo especulativo indicam que o raciocínio do autor de Ecce homo não está longe da realidade atual. A moralidade mercantil (ou financeira) que produziu a bolha imobiliária americana tem algo de bucaneira ou flibusteira. E quem o diz são os veículos jornalísticos mais respeitados pelo mundo dos negócios.
Causou espanto, por isso, ouvir durante o IV Congresso Brasileiro de Publicidade (São Paulo, 14-16/7/2008) a candente defesa da ‘liberdade de expressão comercial’ contra as tentativas de regulamentar a publicidade na mídia eletrônica.
Uma e outra
Para começar: a noção de ‘liberdade de expressão comercial’ é, no mínimo, inadequada sob o ponto de vista semântico. O adjetivo comercial é restritivo, intrinsecamente limitador da liberdade, qualquer liberdade. Comércio absolutamente livre não existe. Preços, taxas, regulamentos e mesmo a disciplina concorrencial funcionam como barreiras para evitar que atravessadores, contrabandistas e traficantes sejam considerados comerciantes decentes.
A cruzada ‘Cidade Limpa’ empreendida pela prefeitura de São Paulo mostra que as manifestações comerciais podem e devem ser controladas. Idem no tocante à eliminação da propaganda de cigarros nas competições da Fórmula 1. A campanha de publicidade que apresentava como remédio um iogurte foi considerada enganosa e suspensa.
A expressão comercial – ou propaganda – não pode ser comparada com a liberdade de expressão prevista na Constituição. Essa, sim, irrestrita, ampla, ilimitada.
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Proibir, simples assim
Gilberto C. Leifert (*)
Copyright Folha de S.Paulo, ‘Tendências/Debates’, 22/7/2008; intertítulos do OI
A publicidade está sendo considerada causa de problemas complexos, como diabetes, obesidade, alcoolismo e mortes no trânsito. Esse é o diagnóstico simplista daqueles que se intitulam xerifes da saúde e do bem-estar da população – uma minoria que se julga mais esclarecida e, por isso, quer tutelar o cidadão comum.
Mas o que realmente parece incomodar os ‘xerifes’ não são os anúncios. É a liberdade: eles experimentam insuportável sofrimento quando confrontados com pessoas livres, decididas, capazes de votar, casar, manejar o orçamento doméstico etc. Diante do conjunto de iniciativas oficiais mirando a publicidade de automóveis, bebidas alcoólicas, medicamentos, alimentos, refrigerantes e produtos destinados a crianças, entre outras categorias, os menos avisados acabarão acreditando que, além da dengue e da febre amarela, o Brasil padece da epidemia de anúncios enganosos e abusivos. Não é verdade.
O número de reclamações recebidas pelos Procons e pelo Conar está longe, muito longe de indicar que o atual sistema misto de controle, que combina legislação e auto-regulamentação, esteja doente.
Iniciativas oficiais
Diante desse dado tranqüilizador, é prudente desconfiar de quem prescreve o remédio da proibição da publicidade como solução eficaz e indolor para problemas complexos.
‘Há preconceito em achar que o pobre não sabe escolher’, adverte Rosani Cunha, do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). No mesmo sentido é a observação de Michael Klein, das Casas Bahia: ‘A classe C está mais exigente e informada’. Ambos têm toda a razão.
As mães contempladas pelo Bolsa Família são livres para gastar o dinheiro que recebem. O programa oficial reconhece o discernimento e o direito de escolha delas. Além de arroz e feijão, podem comprar produtos industrializados anunciados na mídia.
Faz sentido. A nova legião de consumidores conhece as próprias necessidades e se preocupa com a saúde. Tende a abandonar os produtos feitos em fundo de quintal, sem controle sanitário. Além dos gêneros de primeira necessidade, agora podem comprar biscoitos, refrigerantes, iogurtes etc. identificados pelas marcas.
São produtos lícitos e seguros para o consumo e que, portanto, podem ser comercializados e anunciados.
Eventuais abusos cometidos pelos anunciantes estarão sujeitos às sanções do Código de Defesa do Consumidor (detenção e multa) e da auto-regulamentação (sustação da veiculação pelo Conar).
Mas, ao que parece, a eficiência do sistema não importa. Ao mirar só a publicidade, as iniciativas oficiais revelam que o Estado considera os cidadãos incapazes de receber informações e, a partir delas, fazer escolhas.
Juízos de valor
Anúncios ajudam as pessoas a decidir. Informam sobre novos produtos, promovem comparações de atributos e preços e estimulam a competição entre concorrentes. Podem, ainda, ser pedagógicos, como nas advertências ‘Se for dirigir, não beba’ ou ‘Este produto é destinado a adultos’, adotadas pelo Conar a partir de 10/4 para os anúncios de bebidas alcoólicas.
Uma das doenças do país é o excesso de leis. As proposituras contra a publicidade pretendem suprimir direitos. Faria melhor o Estado apoiando o desenvolvimento do senso crítico de nossos consumidores por meio da educação e da informação.
Que tal introduzir no currículo escolar a disciplina ‘liberdade de escolha’, para transmitir às crianças noções acerca de hábitos saudáveis, riscos do sedentarismo, álcool, tabaco e drogas, bem como noções sobre a importância da informação (opinião, notícia e anúncio) para a cidadania?
Enquanto os poderes públicos perseguem a publicidade, convivemos com o seguinte paradoxo: jovens de 16 anos podem escolher a carreira que pretendem seguir e elegem o presidente da República, mas poderão ser impedidos de assistir a comerciais de refrigerantes e sorvetes (sic) em televisão antes das 21h caso seja aprovada uma das medidas defendidas pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa.
Cidadãos responsáveis e consumidores conscientes dependem de informação. Tutela, restrições exacerbadas e proibições arbitrárias afetam o sistema imunológico do organismo social. Cidadãos desinformados acabam debilitados: perdem a capacidade de formular juízos de valor e, portanto, de fazer escolhas. Instalada a epidemia, os mais esclarecidos, a pretexto de proteger a maioria, passam a tomar decisões em lugar dela. Simples assim.
(*) Diretor de Relações com o Mercado da Rede Globo, é presidente do Conar (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária)
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