Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Tragédia americana

Quando acontecimentos inesperados e de grande impacto ocorrem, é uma tendência natural, quase inevitável, avaliar que terão profundos efeitos sobre a vida dos que são afetados.

Assim, não foi surpreendente que após os atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001, que de uma forma ou de outra tiveram impacto sobre quase todos os habitantes razoavelmente informados do planeta, muitos tenham dito de modo peremptório que o mundo jamais seria igual ao que fora até então.

Dez anos depois, é possível afirmar com boa margem de segurança que as consequências para o mundo em geral, para as relações internacionais em particular, mesmo para a vida nacional americana, dos fatos daquele dia não foram tão determinantes ou dramáticas como se imaginava.

É claro que para quem perdeu parentes, cônjuges ou amigos na tragédia, tudo de fato deve ter mudado, mas assim é com a morte de alguém próximo em quase todas as circunstâncias, em especial nas imprevisíveis.

Também é fato que, para quem costuma viajar de avião, especialmente para ou nos Estados Unidos, a rotina da atividade sofreu radicais alterações, com enorme aumento de desconforto, mas é difícil argumentar que isso seja relevante para a humanidade, a relação de forças geopolíticas ou a economia global.

Pedaços coerentes

Nos dias e semanas após o trauma das Torres Gêmeas, a reação do governo dos Estados Unidos permitia antever que o país, única superpotência de fato após o fim da Guerra Fria, iria fazer valer sua força de modo unilateral e que ela prevaleceria contra qualquer inimigo, resistência ou argumento. O mundo unipolar se estabeleceria inexoravelmente.

Não foi o que aconteceu, como se sabe. O enorme poderio americano não foi suficiente para garantir aos Estados Unidos uma vitória acachapante no Iraque ou no Afeganistão. Seus limites, muito maiores do que se imaginava, ficaram claríssimos e jamais serão expandidos novamente.

A arrogância do discurso de George W. Bush, de que sua nação lutaria de preferência com aliados, mas sozinha se necessário, e de que os países que não estivessem com ela estariam contra ela, se desvaneceu. A unipolaridade deu lugar ou à multipolaridade ou a polaridade nenhuma, no máximo a uma nova bipolaridade (Estados Unidos e China), a depender do analista.

A “guerra global ao terrorismo”, que Bush declarou também, não chegou a se concretizar e seus poucos e frustrados arremedos (as campanhas no Iraque e no Afeganistão, ações pontuais no Paquistão e outros países, articulações com outros governos para isolar o Irã e para hospedar prisioneiros suspeitos de terrorismo) apenas ajudaram a erodir o prestígio dos Estados Unidos e minar sua hegemonia global, que a crise financeira de 2008 terminou de sepultar.

Ocorreram graves atentados terroristas em outros países depois do 11 de Setembro (Espanha, Reino Unido, Indonésia, Índia, por exemplo) e muitos ainda consideram justificadamente o fundamentalismo islâmico uma ameaça concreta à sua segurança e de seus cidadãos (em especial, Paquistão, Iraque, Iêmen, Somália), mas nem de longe o mundo se transformou – como alguns previram – num ambiente em que uma jihad global se estabeleceria.

Pode-se argumentar que foram as medidas de segurança adotadas pelos Estados Unidos depois do 11 de Setembro que impediram a materialização desse cenário. Mas sociedades do capitalismo central que não chegaram nem perto do nível de paranoia que se estabeleceu nos Estados Unidos tampouco sofreram com ações terroristas de porte.

Bin Laden foi morto, a Al Qaeda, se não chega a estar desbaratada, muito provavelmente está próximo disso (e não é possível negar o êxito do aparato americano de resposta ao terrorismo nesse quesito), mas os pressupostos da guerra global ao terror eram de que ela não se limitaria a esses inimigos específicos (e essa é a razão da crítica de muitos ao projeto de Bush).

Uma análise objetiva do fenômeno do terrorismo internacional levará à conclusão de que ele é em 2011 muito menos relevante do que em meados da segunda metade do século XX (quando grupos diversos, palestinos, irlandeses, bascos, italianos, alemães, islamitas, indianos, xiitas, canadenses, americanos, sul-americanos, corsos, chechenos, curdos, japoneses estavam em ação).

A megalomania do governo Bush o levou a predizer que a vitória contra Saddam Hussein no Iraque e a consequente democratização do país serviriam como efeito-demonstração para o Oriente Médio e que em pouco tempo toda a região adotaria mecanismos institucionais de poder similares aos do Ocidente.

Para alguns, o vaticínio de Bush se realiza agora por meio da Primavera Árabe. Mas é muito pouco provável que o resultado final, ao menos no curto e médio prazos, das insurgências no Egito, Tunísia, Líbia, Síria, Iêmen, Jordânia venha a ser qualquer regime minimamente similar a uma democracia ocidental.

Quem conhece a história dessa região sabe seguramente que, muito mais possível do que qualquer desses Estados (a maioria dos quais produzidos artificialmente pelas potências ocidentais e mantidos coesos apenas graças à força de regimes tirânicos e autocráticos) virar uma democracia nos próximos cem anos é que eles se desfaçam em pedaços coerentes com os grupos étnicos, religiosos ou tribais que os compõem e que esses grupos se guerreiem em busca de mais território e poder.

Mais cautela

É óbvio que o mundo agora é bastante diferente do de 10 de Setembro de 2001. No entanto, o motor das mudanças não foram nem os atentados nem a reação a eles por parte de Washington. Muito mais sérios para os Estados Unidos e para o mundo foram a crise do subprime e suas decorrências, o crescimento da China e de outros países emergentes (inclusive o Brasil) na economia global e a revolução permanente dos meios de comunicação e informação.

Se algum papel de fato relevante o 11 de Setembro exerceu no processo foi o da quantidade enorme de recursos dispendidos pelos Estados Unidos nas operações bélicas no Iraque e no Afeganistão. Recente estudo da Brown University os estima em cerca de US$ 4 trilhões, equivalentes ao déficit do orçamento público federal acumulado entre 2005 e 2010. Sem contar, é claro, a vida de mais de seis mil militares americanos (mais do que o dobro dos mortos no 11 de Setembro) e de pelo menos 137 mil civis nos dois países, mais o Paquistão.

Do ponto de vista sociológico interno dos Estados Unidos, não foram poucos os que acreditaram que o 11 de Setembro iria unificar a sociedade, que estava tão profundamente dividida que a eleição presidencial de 2000 terminou em um virtual empate, só resolvido pela Suprema Corte, em decisão tomada por cinco votos a quatro em favor de Bush contra Al Gore.

Mas a unanimidade nacional forjada na dor logo se dissolveu e o país está agora quase tão rachado quanto há dez anos, ou mais. A divisão atual se reflete em parte até na maneira como os atentados de 2001 são entendidos atualmente. Uma proporção muito maior agora em relação a dez anos atrás percebe que a ação do terrorismo pode ter sido motivada por malfeitos dos próprios Estados Unidos no passado.

O senso de vulnerabilidade total que se alastrou entre os americanos nos dias seguintes aos atos terroristas, e que levou a maioria absoluta a um maniqueísmo cego, arrefeceu, em parte, provavelmente porque nada nem de leve similar a eles voltou a ocorrer em seu país, mas talvez também porque o bom senso terminou por se impor a, pelo menos, contingentes expressivos de pessoas que o haviam abandonado.

Mas, apesar de o simplismo bicromático ter perdido espaço no conjunto da sociedade americana, ele pode ter se fortalecido entre os que não o rejeitaram como fonte de explicação dos problemas nacionais. É difícil (talvez impossível) quantificar a influência que o 11 de Setembro deixou nos grupos de pessoas que agora se reúnem em movimentos quase fascistas como o Tea Party e que expressam ódio com indisfarçável teor racista contra o presidente Obama. A intensidade do discurso beligerante do Tea Party, pouco usual em movimentos que tenham chegado como ele ao primeiro escalão do debate político nos Estados Unidos, pode ser creditada em parte aos sentimentos de extrema desconfiança contra tudo que é diferente, estrangeiro, nutridos a partir dos atentados e insuflados pelo governo de George W. Bush.

É certo que aquela tragédia ajudou a cristalizar atitudes xenofóbicas e conservadoras que deságuam em leis de imigração como as dos Estados de Arizona e Alabama e em campanhas bem articuladas para negar a cidadãos estrangeiros direitos básicos como os chamados de Miranda (que obrigam todo agente policial a alertar um suspeito no momento em que é detido de que pode permanecer em silêncio, tem direito a advogado e que esse advogado deve estar presente quando ele for interrogado e que tudo que disser pode ser usado contra ele num tribunal de Justiça).

Apesar de ter possivelmente contribuído para radicalizar quem depois viria formar esses grupos de extrema-direita que agora atuam no palco principal da cena política americana, o 11 de Setembro não conseguiu se comprovar para a maioria dos americanos como evidência de um “choque de civilizações”, como intelectuais e líderes partidários conservadores defendiam. Segundo pesquisa do Pew Research Center divulgada na semana passada, 35% dos americanos acham que os atentados foram indício de um grande confronto entre o Ocidente e o Islã, e 57% os consideram apenas parte de um conflito entre os Estados Unidos e um pequeno grupo radical islâmico.

Temeu-se que as liberdades civis estivessem seriamente ameaçadas nos Estados Unidos. A aprovação rápida e quase unânime pelo Congresso da Lei Patriota, que deu ao Estado poderes excepcionais, talvez justificasse esse temor. Mas, afinal, embora o Executivo continue a exercer alguns desses privilégios, a prisão de Guantánamo continue aberta e em funcionamento (apesar de ter agora número relativamente reduzido de detentos) e cidadãos estrangeiros tenham sido desprovidos de direitos essenciais, como os de julgamento em tribunais civis, para os cidadãos americanos a reação quase histérica das autoridades ao 11 de Setembro não afetou muito suas prerrogativas.

Viver nos Estados Unidos, em especial nas cidades de Washington e Nova York, ficou um pouco mais difícil e parecido com o cotidiano de outros países: é preciso se identificar para entrar na maioria de prédios públicos, as câmeras de vigilância são mais aparentes e comuns do que eram no passado, muitas pessoas se tornaram mais cautelosas e até agressivas quando se relacionam com estrangeiros, em especial os que são ou têm aparência de árabe ou muçulmano.

Contudo, mesmo para quem de fato pertence a esses segmentos étnico e religioso, em geral não muito mudou nestes dez anos, exceto nas semanas e meses imediatamente após os atentados.

Emoção e preconceito

Pesquisa do Pew Research Center, feita apenas com integrantes da comunidade islâmica residente nos Estados Unidos, indica discreto mas não escandaloso aumento do preconceito por parte de brancos e autoridades americanos contra eles em 2011 com relação a anos anteriores após 2001.

Mas em nenhum item que demonstra esse preconceito (ser alvo de ofensas, vítima de atitude de suspeição injustificada, objeto de discriminação por parte de um agente da lei ou de um funcionário público) a porcentagem de muçulmanos que se disse atingida excede 25%;

Mais importante: a maioria esmagadora dos entrevistados diz estar feliz com sua vida nos Estados Unidos (82%) e considera a comunidade onde mora um “bom” ou “excelente” lugar para viver (79%). Só 16% dizem que os americanos em geral são hostis aos muçulmanos (48% dizem que eles são “amigáveis”). De fato, os muçulmanos se declaram mais satisfeitos com o estado genérico da vida nos Estados Unidos (56%) do que todos os americanos (23%).

Outra pesquisa do Pew Center revela que 43% dos americanos admitem que alguma ação errada dos Estados Unidos antes de 2001 possa estar entre as razões da tragédia, contra 45% que rechaçam a hipótese (no final de 2001, só 33% aceitavam essa hipótese). Mais significativo é que entre jovens (de 18 a 29 anos), a maioria (52%) aceita a explicação de que algum mau comportamento americano anterior possa ter estado entre as razões da tragédia.

Outros observadores, sob o formidável impacto das cenas de Nova York e Washington dez anos atrás, avaliaram que ele seria tão enorme que toda a maneira de pensar e se expressar sofreria radicais transformações, numa verdadeira revolução cultural.

O escritor Don DeLillo afirmou que o 11 de Setembro mudaria “o modo como pensamos e agimos” por muitos anos. O historiador Taylor Branch disse que o cinismo iria deixar de existir. Roger Rosenblatt decretou o fim da ironia. Nada disso aconteceu, como é evidente. Os seres humanos continuam a elaborar ideias e a pautar seu comportamento mais ou menos do mesmo modo como há dez anos.

Esses três autores e muitos outros poderiam ter se lembrado das lições de Adam Smith na sua Teoria dos Sentimentos Morais, em que ele explica como um terremoto na China pode inicialmente provocar enorme sentimento de compaixão em milhares de pessoas, até que a vida dessas pessoas retorna aos previsíveis acontecimentos corriqueiros e autofocados e elas voltam a se incomodar muito mais com uma dor de dedo do que com a morte de milhões de estranhos. Por mais que a lamentem.

Mudanças ocorreram, lógico, mas não por causa dos atentados. Muito mais influentes nas alterações culturais dos últimos dez anos foram as novas tecnologias de comunicação e informação (Facebook, Twitter, iPad, Blackberry) e as restrições e adaptações impostas pela crise financeira global.

Por exemplo, vive-se agora numa sociedade (particularmente, no caso dos Estados Unidos) “pós-factual”, para usar o termo cunhado por Farhad Manjoo em seu livro True Enough, em que a crença começa a sobrepujar os fatos. As redes sociais, os blogs realimentam convicções em guetos de discípulos de uma só opinião, que prescindem da realidade para se afirmarem como verdade.

É até correto que esse tipo de processo ocorreu logo após o 11 de Setembro, quando um enorme contingente de americanos acreditou, sem nenhuma base factual, que Saddam Hussein havia tido participação nos atentados e que, por isso, era justificada a decisão do presidente Bush de invadir o Iraque para tirá-lo do poder.

Mas não foi o 11 de Setembro que provocou esse fenômeno de avanço da opinião sobre o fato, que muito provavelmente teria acontecido mais ou menos nos mesmos moldes, ainda que a tragédia de dez anos atrás não tivesse acontecido, como já se prenunciava nos debates muito pouco baseados em fatos e carregados de emoção e preconceitos que cercaram várias passagens controversas do governo de Bill Clinton.

Dia claro

Dez anos depois, muito do espírito que prevaleceu logo depois dos atentados vai ser recordado e talvez revivido nos Estados Unidos. Muita gente vai de novo repetir o lugar-comum de que “tudo mudou” por causa deles. Especialmente os grupamentos mais conservadores da sociedade americana vão se reabastecer de ódio e suspeita contra estrangeiros em geral e islâmicos em particular.

Mas, a não ser que algo em proporção parecida com a hecatombe de dez anos atrás ocorra de novo, os Estados Unidos e o mundo continuarão mudando, mas não de modo tão radical como se pensou, nem por causa da espetacular ação que os militantes da Al Qaeda perpetraram em Nova York, Washington e sobre a Pensilvânia naquele claro dia de fim de verão uma década atrás.

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[Carlos Eduardo Lins da Silva é editor da revista Política Externa, presidente do conselho acadêmico do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Unesp e membro do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional da USP]