Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Tragédias climáticas e a tragédia da mídia

É trágica a cobertura que a mídia brasileira tem dedicado às tragédias climáticas nos últimos anos: rapidez, superficialidade, descompromisso, sensacionalismo – são as marcas de espaços dedicados ao tema, seja na mídia impressa, na eletrônica ou na digital. A mídia não tem conseguido ir além das circunstâncias e se mostra despreparada para abordar aspectos técnicos e científicos do assunto. Se as áreas de risco fossem um paciente e a mídia o seu médico, diria que a medicina se volta para combater a febre sem nenhuma preocupação com a infecção que certamente a teria provocado.

A metáfora é boa. Num país em que governos e autoridades dos três poderes constituídos só combatem o “malfeito”, como reação a denúncias publicadas pela mídia, sobretudo pela mídia impressa, os problemas de alta complexidade das áreas de risco só vão passar por evolução favorável quando seu médico se dedicar, com inteligência e determinação, ao combate das infecções capazes de produzir tanta febre nos últimos anos.

O mais recente exemplo dessa leniência da mídia ocorre em relação a Santa Catarina, onde a impetuosidade das chuvas voltou a provocar, sobretudo no Vale do Itajaí, o flagelo de milhares de famílias. Mais uma vez, o Brasil exportou para o mundo as suas fragilidades na prevenção dos dramas sociais que atingem as áreas de risco junto com a inépcia de seus governantes.

Solução definitiva

Vamos procurar entender um pouco melhor o que se passa no Vale do Itajaí, uma região industrializada e de atrações turísticas que a levam a ser um dos destinos prediletos da população do estado de São Paulo. São dois os rios – Itajaí-Açu e Itajaí-Mirim – transformados ao longo do tempo no “carrasco” das populações de municípios como Rio do Sul, Blumenau, Ilhota, Gaspar, Brusque, Luiz Alves e Itajaí. São rios de itinerário curto e que deságuam na região portuária de Itajaí, à beira-mar. Quando chove forte nas cabeceiras, os dois rios começam a transbordar e inundam todos os municípios ribeirinhos.

O problema está em que as inundações ocorrem nos níveis assustadores desta última enchente, quando o mar, em Itajaí, pelo fenômeno de maré alta, começa a reter o caudal que desce das cabeceiras. Nesse caso, o problema se amplia em poucas horas e há cidades, como Blumenau, onde o rio fora do leito chega atingir mais de dez metros de altura. Quase toda Blumenau foi totalmente submersa nas várias enchentes dos últimos 25 anos.

A mídia cobre as enchentes do Vale do Itajaí factualmente, para usar um jargão dos jornalistas. Parece desconhecer que a Jica (da sigla em inglês, Japan InternationalCooperation Agency) estudou o fenômeno das enchentes no Vale do Itajaí e apontou como solução definitiva para os problemas a implantação de um “canal extravasor” que ligue Blumenau a um outro ponto e deságue no mar, na praia de Armação, alguns quilômetros acima da foz natural dos dois rios, na região portuária de Itajaí. O “canal extravasor” poderá permanecer fechado na maior parte do tempo e só será aberto por ocasião das chuvas mais fortes.

A perene letargia

Quem já cobriu as enchentes de Santa Catarina, como eu, em 1983 e 1985, sabe dizer que a proposta japonesa tem uma lógica irrefutável; a área portuária de Itajaí é “entrolhada” por baía e reentrâncias e até os navios costumam representar obstáculos à vazão das águas. O ponto do litoral onde o “canal extravasor” despejaria suas águas é de mar aberto, em condições de dar vazão em regime de maré alta ou maré vazante. A vazão do Itajaí-Mirim, que tem produzido enchentes devastadoras ao município de Brusque, também seria beneficiada pela redução do volume de água do Itajaí-Açu. E há mais: o porto de Itajaí seria um grande beneficiário da solução, pois sofre excessivamente com o volume de águas que desce de Blumenau e que já foi capaz de deixá-lo semi-paralisado por vários anos, recentemente.

A cada enchente, contudo, são atirados na lata do lixo, e ao cabo de grande sofrimento das populações flageladas, recursos suficientes para que seja construído mais de um canal extravasor. E a mídia cobre mais uma enchente e passa ao largo das causas do problema. Não desfralda a bandeira da “solução definitiva”, seja pelo canal extravasor ou por outra que venha a ser apontada.

A população do Vale do Itajaí não merece conviver por mais tempo com esse estigma, que tem tolhido a sua incrível capacidade de desenvolvimento. O projeto que possa libertá-la, entretanto, só vai sair da gaveta dos burocratas de plantão quando a mídia acordar de sua já quase perene letargia.

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[Dirceu Martins Pio é ex-diretor da Agência Estado e da Gazeta Mercantil]