Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Transparência de uma nota só

Lançado há pouco mais de uma semana, o site Folhaleaks já acumulou mais de 700 documentos. O programa do jornal Folha de S.Paulo faz parte da versão “leaks” chamado “Folha Transparência”. A reportagem que marca sua inauguração como fonte tem como alvo conhecido e contumaz desafeto do jornalão paulista no quesito relações internacionais: trata-se de Celso Amorim, ex-chanceler do governo Itamar Franco (1992-1994) e atual ministro da Defesa do governo Dilma Rousseff.

A reportagem intitulada “Amorim vetou diálogo com dissidentes” é publicada concomitante à divulgação, pelo jornal, de 636 telegramas confidenciais trocados entre o Itamaraty e embaixada em Havana. Amorim é acusado de “entregar” ao regime cubano dois militantes anticastristas, que teriam “invadido” a embaixada brasileira em Havana. O ministro se recusou a comentar os documentos e a Folha rapidamente tentou se explicar: “É o que revelam 636 telegramas confidenciais trocados entre o Itamaraty e a Embaixada do Brasil em Havana, obtidos pela Folha após pedido de desclassificação feito ao Itamaraty e que a partir de hoje são divulgados no Folha Transparência”.

Convenção de Caracas

Uma análise simples do texto publicado revela que os repórteres Fernanda Odilla e Rubens Valente se limitaram a “entrevistar” os documentos vazados. Senão vejamos: “O episódio da invasão ao prédio não é detalhado nos telegramas confidenciais trocados entre Brasília e Havana. As informações do que ocorreu foram localizadas pela Folha nas comunicações do consulado em Miami”. A Folha não acrescenta nenhuma fonte nova ao caso, não entrevistou nenhum dos supostos invasores e publicou a saída clássica para a negativa de Amorim (“procurado pela reportagem não quis se manifestar” – para fingir o “outro lado”).

Numa manobra mirabolante, a reportagem publicada cita um caso de veto à presença do então embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima a um “café”, em Miami, com um grupo que se autoidentificava como “entidades representativas da comunidade de tendência moderada”. Com base nesse obscuro episódio, atribuído implicitamente a Amorim, e narrada de forma confusa na reportagem, a Folha chega a uma conclusão que mais parece “profissão de fé” ao leitor-otário: “Os telegramas evidenciam a baixa disposição do Itamaraty, no período 1993-1994, em manter relações com críticos da ditadura de Fidel Castro. A ponto de expulsar quatro deles da embaixada em Havana, em 1993”.

A estreia do canal Folhaleaks, uma espécie de simulacro do portal WikiLeaks, parece pouco promissora, a julgar pelo viés ideológico da primeira reportagem, carente de apuração e rápida no tom acusatório – para depois quem sabe, no curso da apuração, comprovar que o acusado de fato tinha “culpa no cartório”. A única fonte oficial, que não fica claro se foi ou não ouvida pela reportagem, é Vera Barrouin, chefe da missão em Havana. Os verbos são escolhidos “a dedo”: Vera é “cobrada” pelos repórteres da Folha e não explica coisa alguma, mas se “queixa” (grifos meus):

Cobradasobre a expulsão dos cubanos, a chefe da missão na cidade, Vera Barrouin, queixou-se:

“A imprensa de Miami tem sistematicamente omitido parte de minhas declarações relativas ao fato de que os postulantes de asilo na embaixada […] declararam não exercer atividades políticas, fator fundamental para que a eles se tivesse aplicado a Convenção de Caracas”.

Atributos essenciais

O lançamento do programa de transparência da Folha poderia inspirar, por exemplo, a retomada da investigação sobre o caso Palocci. O então ministro da Casa Civil foi demitido, após uma série de denúncias publicadas pelo jornal, a partir da reportagem “Palocci multiplicou por 20 patrimônio em quatro anos”.Toda a suíte que se seguiu, até a queda do político, reforça um mantra que paira sobre as redações do mainstream: os corruptores jamais são investigados pelos jornalistas. Ou, no dizer dos repórteres Andreza Matais e José Ernesto Credendio: “O ministro da Casa Civil não quis identificar seus clientes nem informou o faturamento da empresa”.

No momento seguinte, Palocci revelaria que a diferença de patrimônio tinha como origem uma esotérica “taxa de sucesso” cobrada sobre seus “conselhos”. A “transparência” do jornal paulista chegara ao seu limite: “O ministro foi enfático ao afirmar que não revelará os clientes para os quais trabalhou, ainda que isso traga ‘consequências’”, escreveu Vera Magalhães.

Os números promissores, do ponto de vista da participação do público, dessa primeira semana do Folhaleaks poderiam inspirar a retomada do caso Palocci. É do mais alto interesse público, a meu juízo, a singela revelação: quem são os clientes do ex-ministro? Qual a natureza dos contratos de consultoria? Quanto era de fato a “taxa de sucesso”? Com a palavra os executivos da Folha de S.Paulo.

Informações divulgadas pela Folha.com anunciavam que as 700 mensagens já recebidas (até 18h de sexta-feira, 23/9) apontavam “suspeitas envolvendo administrações municipais, estaduais e federais. Há vários relatos com indícios de nepotismo, de licitações direcionadas e de contratações favorecendo empresas que têm políticos como proprietários”.

Transparência e prestação de contas são atributos essenciais ao avanço democrático, à boa gestão da coisa pública. Tudo a ver com o papel do jornalismo em seu compromisso com esses princípios democráticos. Contudo, a transparência da imprensa deve servir para denunciar corruptos e corruptores, com igual intensidade e vigor.

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[Samuel Lima é docente da UnB, professor visitante na UFSC e pesquisador no objETHOS]