Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Transparente, para os seus

Antes de tratar do caso Palocci, Wálter Maierovitch pediu um passo atrás. A bem da verdade, rebobinou quase 2 mil anos de história. Ele foi buscar, em 235, o imperador Alexandre Severo, cujo busto (faz um parêntese) foi furtado de Roma por Napoleão e hoje está no Museu do Louvre. Mas o que fez Alexandre Severo? Decretou a pena de morte para um súdito do império que convencia as pessoas de sua própria influência nas decisões do imperador. Essa pessoa, “o Palocci da época”, se chamava Vetrônio Turino, e tanto irritou Severo que foi condenado a morrer sufocado por uma nuvem de fumaça de palha e lenha verde. A partir daí, por tradição até, a prática entrou em códigos penais por toda a Europa como crime de exploração de prestígio. No Brasil, antes de 1995, era exploração de prestígio também. Depois passou a se chamar tráfico de influência.

“Veja você que essa é uma praga milenar”, diz o jurista, de volta a junho de 2011, envolvido até o pescoço com a análise da queda do ministro Antonio Palocci da Casa Civil. Sua preocupação é a transparência do homem público, algo que o sigilo de Palocci quanto à sua clientela não deixa ver. Maierovitch também se incomoda com o parecer do procurador-geral da República sobre o caso, um “bill de indenidade”, baseado apenas em informações contábeis da empresa de uma secretária só. Membro de associações antimáfia, estudioso da criminalidade dos poderosos e dos potentes, ele explica a diferença entre tráfico de influência e lobby, mostra esperança em relação a uma CPI que de fato inquira e recorre a um antigo ditado popular português para questionar os enriquecimentos faraônicos: “Quem cabritos possui e cabras não tem, de algum lugar provêm”.

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Ao não revelar a clientela, Palocci agiu como homem público ou como consultor do mundo empresarial?

Wálter Maierovitch– Palocci era um homem público. Homem público significa, nos Estados Democráticos de Direito, aquele que representa o cidadão e deve pautar sua vida pela transparência. Um dos pilares do sistema democrático é a transparência. Então, para o homem público, o interesse privado não pode jamais se sobrepor ao interesse público. No caso do Palocci, o que se viu quando ele alegava que os contratos de sua empresa eram confidenciais? Que seu interesse pessoal e o dos clientes ou ex-clientes da empresa dele prevaleciam sobre o interesse público. Evidentemente, um homem que tinha sido deputado federal e ministro da Fazenda deveria mostrar como fez fortuna com tamanha velocidade. Ainda mais quando não se sabe sequer quantos funcionários tem a tal “empresinha” que ele revelou a Dilma, com exceção de uma secretária inepta, que mal informa o que a empresa faz, e da qual o ex-ministro detém 99% do capital social. A empresa poderia até ter nome individual: Palocci. Só para você ter ideia, o Al Capone, que era da Cosa Nostra, da máfia siciliano-americana, ganhou US $ 60 milhões em 13 anos da Lei Seca fazendo tráfico de bebida alcoólica. O Palocci, em dois meses, ganhou R$ 10 milhões. Proporcionalmente, ganhou muito mais do que o Al Capone.

Qual a sua opinião sobre o atestado de inocência que o procurador-geral da República emitiu quanto ao enriquecimento abrupto do ex-ministro?

W. M –Em primeiro lugar, o procurador-geral da República, como todo representante do Ministério Público, é o fiscal do cumprimento da lei. Mais: é o representante da sociedade e titular da ação penal. É ele quem pode propor ação penal contra aqueles que têm foro privilegiado. Então veja o tratamento a vela de libra que o procurador deu ao Palocci. Absurdamente, ele se contentou com uma informação meramente contábil. Não fez nenhum cotejo, nenhuma comparação, nenhum levantamento, nenhuma verificação em contas correntes ou bancárias. Não determinou nenhuma perícia. Não ouviu nenhum dos clientes. Ele se convenceu só com os documentos que o Palocci mandou, se contentou com o escritural. Acabou dando, enfim, uma declaração de impunidade, um bill de indenidade, como dizem os americanos.

O procurador-geral Roberto Gurgel afirmou que as manifestações do Ministério Público nem sempre agradam…

W. M –Sim, as decisões agradam a uns e não agradam a outros, veja o caso Battisti. Mas Roberto Gurgel falou uma obviedade, o que complica ainda mais a situação. E há outro ponto importante do sistema, que é o seguinte: quem indica o procurador-geral da República? Pela Constituição, é o presidente da República. E o procurador tem mandato de dois anos, podendo ser reconduzido. O prazo do dr. Gurgel vai acabar neste mês de junho e ele briga por uma recondução. Podia ter deixado o caso Palocci para outro, não é? No escândalo envolvendo Dominique Strauss-Kahn, por exemplo, o procurador da acusação foi eleito em 2009 pela cidade de Nova York com 99% dos votos. Ele é um escolhido. No Brasil, o procurador-geral da República é indicado pela presidente porque a presidente teve votos. Então compete a ela escolher?

Uma vez fora do governo, o homem privado deve continuar sob investigação?

W. M –Palocci agora é indene, é incólume. Já que o procurador teve essa postura, se não aparecer nenhum fato novo, nada pode ser reaberto. Isso é uma súmula do Supremo Tribunal Federal. Precisa aparecer um fato inédito, porque sobre o fato pretérito ele já emitiu opinião.

O senhor vê um cenário propício para a abertura de uma CPI no Senado?

W. M –Lembro João Alves, aquele deputado baiano cassado em 1993 na fraude do Orçamento da União. Ele disse que ficou rico porque ganhou 221 vezes na loteria. Se o João Alves tivesse recebido o tratamento que o Palocci recebeu, ia informar direitinho o que ganhou na loteria e justificaria escrituralmente a Cerval, sua empresa de fachada. Estaria tudo ok. Mas ele caiu numa CPI. Torço para que seja instalada uma comissão parlamentar de inquérito no caso Palocci e que ela seja usada no interesse público, e não como um jogo de barganhas.

Os clientes da Projeto deveriam ter vindo a público esclarecer seus contratos?

W. M –Sim, porque hoje as empresas têm um compromisso social, são parceiras em ações sociais. Tinham o dever de dizer: “Olha, eu contratei uma consultoria assim, assim, assim, não teve tráfico de influência algum”. E por que o procurador-geral não chamou e não ouviu os representantes dessas empresas? Percebe como ficou uma coisa capenga? Não é atribuição dele, mas podemos falar que o procurador-geral deu um habeas corpus. E ainda fez tabula rasa do pecunia olet, princípio romano que quer dizer “o dinheiro tem cheiro”. Todas as fortunas malcheirosas precisam ser investigadas.

Palocci deixou o assento no Conselho Administrativo da Petrobrás, para o qual foi nomeado no final do abril. Os assentos no conselho são da pessoa física, mas a questão ética valeria também para essa posição?

W. M –Um ministro é um agente da autoridade do presidente da República. Se quebra a relação de confiança, ou pede exoneração ou é demitido. Agora, muitos desses assentos são sinecuras em níveis federais, estaduais e municipais. Basta ver o que o Kassab tinha prometido para o ex-vice-presidente da República, Marco Maciel. Vejo aqui uma justificativa canalha: a resposta da administração de que, sem oferecer vantagens, ela não terá nesses conselhos bons profissionais. É uma canalhice isso porque, muitas vezes, nesses conselhos só existe o compadrio partidário. Daí o PMDB a mostrar que, apareceu um cargo, ele está atrás. Ético seria somar os melhores, e não se submeter a esse tipo de influencia. No Brasil, está sendo o inverso de tudo isso.

O Planalto precisa de um interlocutor com o perfil de Palocci para fazer o meio de campo com o setor privado?

W. M –Eu não tenho essa experiência, mas é obvio que o governo precisa estar em sintonia com o setor privado. O que a gente vê, pelo lado técnico, são sempre pessoas da área convidadas para tanto. O Palocci é um estranho no ninho. Ele tinha a experiência de prefeito de uma cidade como Ribeirão Preto, é um médico sanitarista.

Causa estranheza um médico sanitarista assumir esse tipo de função?

W. M –Eu acho que por isso mesmo ele deveria ser mais transparente.

Como o senhor diferencia lobby, que pode até ser regulamentado, de tráfico de influência?

W. M –No tráfico de influência existe a promessa de que a pessoa vai interferir com sucesso numa negociação e tem vínculo tamanho com o poder que será capaz de gerar esse benefício. O lobby faz aproximações, tanto que a atividade de lobby nos EUA é permitida, e o tráfico de influência, não. Vou ler um artigo do Código Penal, o 332, para isso ficar bem claro para o leitor. O crime é o seguinte: solicitar, exigir, cobrar ou obter, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função. A pena é de 2 a 5 anos. O lobista de uma empresa de armas, por exemplo, pode se aproximar e dizer: “Olha, o projeto que quer acabar com a venda de armas é ruim”. Mas assumir uma bandeira para tirar vantagem, aproveitando-se dos seus vínculos com o poder, eis o crime.

O Brasil tem um sistema atraente para os criminosos?

W. M –Sim, em todos os campos. O Brasil é esconderijo de mafiosos de ponta, de terroristas do tipo Battisti, porque sabem que aqui virou praça de impunidade, uma praça atraente para lavagem de direito e reciclagem de capitais, investimentos, compras. Temos um órgão de inteligência financeira, o Coaf, no qual o ultimo relatório feito no governo Fernando Henrique, quando ele foi criado, suspeitou de apenas 568 casos de lavagem de dinheiro em quatro anos. Isso, em qualquer órgão sério, é trabalho de duas horas. Veja a atribuição desse Coaf: dever de vigilância de bancos, mercado de imóveis, factoring, mercado de artes, pedras preciosas, bolsa de mercadorias e futuro. Apresentar 568 casos em quatro anos é recorde mundial de incompetência.

O senhor vem acompanhando de perto o processo de extradição de Cesare Battisti. Ficou surpreso com a decisão do STF de libertá-lo?

W. M –O que mais me deixou surpreso foi a fala do advogado-geral da União (Luís Inácio Lucena Adams), que esteve na bica de ser ministro do Supremo. Na sua sustentação oral ele concluiu que havia risco para o Battisti com base – pasme! – na exuberância da democracia italiana. Então o sistema democrático exuberante gera riscos na cabeça dele e do Lula, que o apoiou. Na Itália, há mais de 400 terroristas que já cumpriram pena e se reintegraram à vida social. Não houve nenhum caso de perseguição e muito menos de atentado à vida ou à incolumidade física dessas pessoas. Vamos pensar nesse tipo de gente que é o Battisti e no Fernandinho Beira-Mar, dois criminosos para ninguém botar defeito. Imagine se o Fernandinho Beira-Mar fugir e for para a Itália. O governo brasileiro, com base no tratado de cooperação judiciária na área criminal, pede a extradição. E a Itália não a fornece dizendo que a exuberância da democracia brasileira vai gerar risco para a integridade corporal de Fernandinho Beira-Mar. Esse argumento é o fim do mundo, uma vergonha para o Brasil e para os brasileiros.

A nossa democracia é exuberante?

W. M –Na nossa democracia, às vezes órgãos de poder não sabem o que é um Estado de Direito.