‘Alguma coisa acontece no meu coração/ quando eu cruzo’ a tecnologia com a ‘avenida’ da informação. A indisfarçável intertextualidade proposta pela escrita deste artigo com os versos iniciais da belíssima Sampa, de Caetano Veloso, suscita, aparentemente, estado subjetivo semelhante ao que, na segunda metade da década de 1960, gerara no olhar inquieto do poeta-compositor, isto é, um certo espanto ante um quadro que, como perfeita simbiose, agrega, a um só tempo, admiração e perplexidade.
No caso em questão, não está, a exemplo dos versos da música, a percepção contrastiva entre a ‘dura poesia concreta de tuas esquinas’ e a ‘deselegância discreta de tuas meninas’. Não, o impacto do olhar do ainda jovem e inquieto artista remetia a uma instabilidade de caráter lírico, enquanto o olhar do já calejado articulista (ao menos, na idade) é direcionado para outro contraste (ou conflito) – entre as promissoras ofertas de requintada tecnologia e a suspeita a respeito de um uso banal e degradado do quanto de belo os novos suportes têm a tornar disponível a circulação democrática da informação e do conhecimento.
Distúrbio de comportamento
A observação diária acerca do comportamento do cidadão brasileiro – dos mais diferenciados segmentos econômicos e sociais – no tocante à sua relação com as novas tecnologias da informação, deixa patente a supremacia do ‘encantamento’ sobre a ‘extração de conhecimento’. A questão, aqui timidamente prenunciada, apenas pretende registrar a apreensão quanto ao futuro, com base na expressão dos sintomas do presente.
O deslize do olhar sobre as cenas do cotidiano dá conta de que boa parte da população brasileira padece de ‘DDI’ (‘distúrbio de dependência de informação’). A relação compulsiva dos usuários com o celular é traço evidente do que aqui pontuo. Em qualquer situação, principalmente os mais jovens, durante uma aula, no metrô, em bares e outros lugares, alguém, na maioria das vezes apenas pelo impulso, aciona o aparelho, seja para uma conversinha vazia, seja para verificar mensagens, ou ainda para mais um ‘game’ – e eis que o ‘toque mágico’ se dá. Irresistível apelo ‘recarrega a bateria da dependência’, próprio de quem foge do desconforto ante o ‘vazio’.
Igual compulsão se estende à inclusão da música, seja na direção de um veículo, seja para andar no calçadão. Parece existir pavor contra o convite de uma vivência subjetiva, introspectiva, que possa conduzir o indivíduo a um estado pensante. Em outros termos, arrisco afirmar que, em tempos atuais, a perseguição febril por informação não passa de mecanismo escapista para evitar o enfrentamento de uma total vacuidade subjetiva, típica de vida sem memória, dada a ausência de referências.
Não é por acaso que Guy Debord, para epígrafe do livro A sociedade do espetáculo – publicado na França em 1967 e no Brasil somente em 1997, pela Contraponto (graças à indicação de um amigo das travessias acadêmicas, Aluisio Menezes, à editora, dado, aliás, registrado na própria publicação) – escolheu a passagem de Ludwig Feuerbach (1804-1872), abaixo transcrita:
‘E sem dúvida o nosso tempo… prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser… Ele considera que a ilusão é sagrada, e a verdade é profana. E mais: a seus olhos o sagrado aumenta à medida que a verdade decresce e a ilusão cresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado‘ (op. cit., pág. 13).
A advertência de Feuerbach é pontuada num contexto no qual nada ainda existia para além da fotografia, já que o filósofo faleceu 15 anos antes do cinema. O olhar do pensador, contudo, é sempre antecipatório, razão pela qual não precisaria aguardar a avalanche das ofertas audiovisuais para capturar o fundamento por ele fixado na citação. Por outro lado, Debord, ao escolher a passagem, bem sabia nela encontrar o gancho necessário às reflexões que promoveria ao longo de seu escrito. O contraste detectado por Feuerbach entre a ‘verdade’ e a ‘ilusão’ sinaliza, para Debord, a percepção exata para o que viria a propor como conceito de ‘sociedade do espetáculo’.
A incultura da deformação
Ao recuperar, nas limitações típicas de um artigo, o ‘diálogo’ entre Debord e Feuerbach, abre-se a perspectiva crítica para acentuar, no Brasil, a banalização que a substancial reflexão de Debord sofreu. Seja por leitura defeituosa, seja (principalmente) por ‘leitura auricular’, o fato é que, com freqüência e nos mais diferentes ambientes, alguém – até com impostura acadêmica – cita a ‘espetacularização’ fora de suas implicações conceituais, com as quais Debord operou, com eficiência, o pensamento teórico. Como nada escapa da corrosão imposta pelo domínio do ‘senso comum’, a sutileza de Debord se tornou objeto da mais assombrosa distorção. Assim, ‘espetáculo’ é decodificado – na mídia é freqüente o reforço à distorção – como ‘exploração emocional de acontecimentos’ ou ‘exagero exibicionista’ e outras correlatas imperfeições.
A prova real de que a deformação provém tanto da incultura quanto da impostura está autenticada pelo próprio autor (Debord), ao declinar o sumo da questão, no primeiro parágrafo da obra:
‘Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação.’ (pág. 13)
Ao mencionar ‘representação’, o que Debord tematiza é a falência de uma relação de autenticidade entre indivíduo e realidade, por conta de algo que, da ordem da mediação, se interpõe, impedindo, a partir daí, a autonomização da consciência em favor da sujeição do indivíduo à mimetização. Em síntese, Debord, no limiar da explosão da chamada ‘cultura de massa’, dando um passo à frente dos frankfurtianos e de Heidegger, inclui, ao longo da obra, a metástase do processo de ‘representação’ às entranhas do Estado. Daí que o sentido de ‘espetáculo’ não se confina à ação da ‘indústria cultural’ na consciência do indivíduo, conforme pensavam os teóricos de Frankfurt (principalmente, Adorno, Horkheimer e Marcuse), nem se limita à dualidade proposta por Heidegger entre a ‘existência angustiada’ (a autenticidade do ser destinado a viver a ‘errância’) e a ‘existência anônima’, própria do ser em ‘estado de esquecimento de si’.
Não, Debord não se preocupa, pelo menos em caráter focado, com a dimensão ontológica da existência. Debord antecipa a rede de contaminação que, articulada por uma configuração mimetizada, se apropria das instâncias reguladoras do poder. A elaboração teórica de Debord, portanto, agencia a perversão de uma prática relacional entre estrutura do capital e estrutura política, de modo a tornar esta refém daquela, e, num estágio seguinte, uma fundir-se à outra. Quem compreender, na devida clareza, a proposição de Debord, economizará desgastes maiores, frustrações dilaceradoras e, essencialmente, ilusões quanto a promessas messiânicas de quaisquer líderes de plantão.
É possível que, num campo subjetivo profundo, o indivíduo portador de DDI já tenha intuído esse horizonte menos auspicioso e, como autodefesa, se entregue à fruição compulsiva das ofertas tecnológicas (ou das drogas). Enfim, para muitos, ‘escapar’ pode ser sinônimo de ‘suportar’. Todavia, recordando passagem final de ‘Sampa’, há sempre uma saída possível:
‘Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba /…/’
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA – Rio de Janeiro)