Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tudo novamente outra vez?

Na grande maratona de consumir informação, vi, li e ouvi dezenas de pontos de vistas sobre a Copa e sobre a seleção de Dunga. Peço licença para soprar também a minha vuvuzuela:

Eu, brasileiro torcedor, já vivi 51 anos, destes pelos menos uns 45 viciados em futebol. Cabe dizer que nasci e cresci ao lado do estádio Mario Pessoa em Ilhéus – playground onde vi, entre outros, o rei Pelé jogar. Tinha tudo para ser um torcedor, mas tornei-me um telespectador: aquele que assiste à distancia; desses que ainda ouve jogo no rádio e que acompanhou a história da seleção brasileira via TV.

Da derrota de 66, me lembro apenas do nome do carrasco Eusébio soando no rádio; da grande e majestosa campanha de 70, as imagens na memória já aparecem chuviscadas e em preto e branco no aparelho Telefunken do meu avô Alencar, no milagre do via Embratel. Evoluiu a tecnologia de transmissão e evoluiu o sistema que fez do esporte em suas muitas modalidades um espetáculo do circo moderno. Fenômeno parecido, o brasileiro só compartilhou, em escala bem menor nos anos seguintes, na fórmula 1 e no vôlei.

Uma marca de grande valor

Cresceram também o Estado de direito, a infraestrutura urbana e as telecomunicações em um país onde o futebol tornou-se mais e mais profissional, alcançando status de forte atividade econômica no mercado de entretenimento. Consequentemente, os clubes ampliaram suas bases e o torcedor, sua paixão e dependência.

A CBD tornou-se a CBF, modernizou seus planos de comercialização e marketing e transformou a camisa canarinho em um produto globalizado de grande valor de licenciamento. No campo esportivo, a seleção fez por merecer essa supervalorização, pois soube se manter líder em títulos mundiais e ao longo dos últimos 40 quase sempre se posicionou em primeira posição nos rankings gerais.

Na campo da política esportiva internacional, através da CBF, seu dirigente-mor, João Havelange, chegou à presidência da entidade máxima, a Fifa, realizando uma administração expansionista que lhe garantiu fazer o sucessor e também o título de presidente de honra vitalício. Enfim, a CBF transformou a Seleção em uma companhia teatral muito requisitada, com vários elencos para cumprir os calendários de turnês pagos a peso de ouro. No plano simbólico e no plano concreto a marca Seleção Brasileira tornou-se a nossa marca de maior valor e de recall em todos os continentes.

Um clima que esquentou o debate

O país do futebol – diga-se de passagem – é apaixonado pelo esporte desde a sua infância, no início do século 20, e sempre galvanizou esse sentimento popular, antes mesmo de sediar a Copa em 1950. No transcorrer do século, em cada rua, vila ou cidade, a bola continuou cheia como principal forma de lazer e diversão da população, ao lado claro, da fofoca, da música e da bebida. E virou lugar-comum dizer que no Brasil todos são técnicos e comentaristas – criticar o técnico e o elenco a cada convocação ou Copa tornou-se o segundo esporte mais praticado por aqui.

Se por um lado a seleção tornou-se um modelo superavitário, por outro lado os clubes, com raras exceções, apesar das torcidas fiéis, são entidades economicamente desestruturadas e frágeis. Nos últimos anos, apesar da aprovação de novas leis, loterias adjutórias e modernização dos principais campeonatos com a crescente venda de direitos televisivos, o quadro deficitário e falimentar das agremiações ainda não foi revertido. Paralelo a isso, os mercados externos mais organizados importam o pé-de-obra e tornam o êxodo de jogadores um negócio mais lucrativo que a atividade produtiva interna; anualmente, centenas de jovens talentos alimentam um comércio lucrativo para procuradores, clubes e empresas.

Motivada pelas imprensa e pela tradição cultural, a paixão dos brasileiros pelo futebol continua ascendente, independente da evasão de craques, da incompetência dos dirigentes ou dos interesses mercadológicos.

Com o surgimento da TV por assinaturas, das novas mídias e ferramentas de comunicação da internet, aumentou exponencialmente a atividade e o jornalismo esportivo ganhou mais vozes. Foi essa massa crítica que produziu, sem dúvida, a maior cobertura jornalística e de entretenimento que o Brasil já fez na história das copas. O mau humor do técnico Dunga cerceou inicialmente a presença do ‘jornalismo’ dos programas parajornalísticos ou dos exclusivamente humorísticos e, na sequencia, todas as mídias, criando um clima beligerante que esquentou sobremaneira o debate.

Nem tanto à terra, nem tanto ao mar

Na África do Sul, a blindagem da concentração e treinos cerceou a liberdade e prejudicou a produtividade, é verdade, mas por outro lado obrigou as editorias a investirem em diferenciais criativos e numa maior variedade de objetos e abordagens. Há controvérsias se isso foi realmente alcançado.

O numero astronômico de jornalistas presentes, ávidos por inéditas e exclusivas, esbarrou na maior retranca já vista em matéria de relacionamento seleção e imprensa. O interminável número de horas de coberturas e reprises transformou todos os dias em domingos de finais do brasileirão. O mundo, que a essa altura era uma jabulani, virou também uma infinita mesa-redonda. Um maior número de jornalistas nem sempre significa mais profundidade ou maior diversidade de gêneros jornalísticos.

A Copa, que ficará marcada por uma política de distanciamento da mídia brasileira, também ficará marcada por ter diminuído privilégios dos grupos jornalísticos dominantes na cobertura da seleção.

No primeiro round, o maior atingido foi a empresa líder de audiência no segmento televisão; no segundo round, com a derrota ‘prematura’, o feitiço virou contra o aprendiz de feiticeiro. A criatura Dunga foi escolhida como bode expiatório e seu criador saiu ileso, se apresentando oportunamente como o restaurador de um erro próprio, não assumido. O grande pajé ficou a salvo e imediatamente abriu a porteira de reatamento de relacionamentos com a mídia. Sobre o escombros da avalanche recente, já anunciou uma grande nova guinada onde promete melhorias e redenções.

No afã da expectativa da nomeação da nova comissão técnica que irá ensaiar os novos convocados a toque de caixa registradora, pois há apresentações agendadas já em agosto – afinal, o show não pode parar – agora a imprensa depara com um novo desafio: reinventar um novo relacionamento com a CBF que não seja nem tanto à terra, nem tanto ao mar.

O manto sagrado que tudo acoberta

A sofreguidão para escolher um novo técnico pode levar a CBF a optar por um iniciante no ramo, como se deu na escolha anterior? Surpreendentemente mais bem-sucedido do que se podia esperar de um não-técnico, diga-se de passagem. Essa possibilidade já cria uma nova tensão com o torcedor, que deseja que desse vez não haja surpresas e que o talento do futebol brasileiro seja premiado pelo menos com a escolha de um profissional experiente a comandar seus craques.

Junte a esse ingrediente uma outra tensão histórica: a falta de alternância no poder da CBF – uma associação privada, mas dependente financeiramente da ação consumidora do torcedor, que nos últimos anos não acompanhou os avanços democráticos da sociedade brasileira; não se alinhou aos critérios de transparência que outros setores privados e públicos alcançaram e permanece um feudo intocável.

E, para complicar ainda mais o caminho ao hexa de 2014, a imprensa tem pela frente, além da missão de fiscalizar os avanços do esporte, como o auxílio eletrônico à arbitragem ou as bolas testadas em túneis de vento virtuais, a hercúlea tarefa de acompanhar a operação faraônica da organização da Copa no Brasil. Quimera existente, por enquanto, apenas no papel, mas que promete consumir um amontoado de dinheiro, em parte público, para proporcionar à Fifa o seu poder soberano superior ao da ONU. Se a receita geral for a mesma empregada na Copa que se finda, o ufanismo será o manto sagrado que a tudo acobertará.

Cúmplice, cidadã ou torcedora, que papel a mídia pretende jogar?

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Cineasta e torcedor do E.C.Vitória