Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

TV Globo, o delegado e outros assuntos capitais

De vez em quando o diretor-executivo da TV Globo se dirige ao público na tentativa de justificar práticas condenáveis de sua empresa. Foi assim no caso Tim Lopes, quando a Globo teve sua versão contestada pelo jornalista Mário Augusto Jakobskind no livro Dossiê Tim Lopes – Fantástico/Ibope, e foi assim no ‘caso dossiê’, quando Ali Kamel publicou neste Observatório sua contestação à reportagem ‘A trama que levou ao segundo turno’, capa da revista CartaCapital (18/10/2006).

Retomando alguns pontos do texto:

1. Kamel defende a posição adotada pela TV Globo de não noticiar o desastre com o avião da Gol, pois, segundo ele, as informações eram ainda imprecisas. O jornalista Paulo Henrique Amorim o desmentiu na sexta-feira (20/10), em seu blog Conversa Afiada), ao afirmar que Ricardo Boechat, diretor de jornalismo da Band, tinha as informações do acidente aéreo e chegou a divulgá-las em seu telejornal, que sai do ar no instante em que o começa o Jornal Nacional;

2. Kamel contesta o trecho da reportagem que afirma que quase todo o JN de 29 de setembro fora dedicado ao ‘caso dossiê’. O diretor da Globo classifica essa afirmação como fantasiosa e diz que ‘o noticiário sobre o dossiê e as fotos, três VTs e duas notas, ocupou oito dos 37 minutos do JN‘. Neste ponto Kamel distorce a informação de CartaCapital, que afirma: ‘o noticiário eleitoral, com destaque para as fotos do dinheiro dos petistas, é praticamente o único assunto’ (pág. 23). ‘Noticiário eleitoral’ e ‘noticiário sobre o dossiê…’ são coisas diferentes. Para verificar que nove dos dez destaques daquela edição do JN tratavam do ‘noticiário eleitoral’, basta acessar a página do telejornal. Além disso, Kamel deveria saber que o público deste Observatório não é composto por leigos, ou Hommers, mas por pessoas que sabem que oito minutos em telejornalismo constituem uma eternidade.

3. Kamel passa boa parte de seu artigo defendendo a atitude do delegado da Polícia Federal Edmilson Bruno. Para o diretor de jornalismo da Globo, a única motivação para o delegado ter procurado a mídia e arriscado sua carreira (pelo menos na PF) foi uma espécie de excesso de zelo profissional. Estava contrariado por ter sido afastado do caso. Tudo bem, esse ponto não pode ser contestado. Cada um acredita no que quiser acreditar.

4. O diretor de jornalismo da TV Globo minimiza a importância da emissora ao sustentar que o delegado Bruno não exigiu que as fotos fossem veiculadas apenas na Globo, mas que também saíssem na TV Bandeirantes e no SBT. Pouco importa. Em vez de assumir uma situação de monopólio, Kamel admite a existência de um oligopólio na mídia brasileira. Este ponto será melhor desenvolvido abaixo.

Função nobre

5. A frase do presidente Lula sob a qual Kamel se esconde no penúltimo parágrafo, atestando a suposta isenção da TV Globo nessas eleições, foi enviada à emissora antes do dia 29 de setembro, informação convenientemente omitida pelo executivo.

6. Fechando com chave de ouro, Ali Kamel afirma:

‘Não sou movido por paixões políticas e meu compromisso é apenas com a minha profissão: relatar os fatos, com correção e imparcialidade, não importando se beneficiam ou prejudicam esta ou aquela corrente política. Posso constatar com orgulho que esta é também a postura dos meus colegas de redação’.

E conclui:

‘Supor que jornalistas da TV Globo e a própria emissora possam perder isso de vista, trocando os compromissos éticos de nossa missão conjunta por objetivos políticos subalternos, é uma ofensa gravíssima que repudiamos com toda a ênfase’.

Ali Kamel deveria saber, até mesmo por sua experiência de vida, que o ser humano jamais será imparcial enquanto for humano. A imparcialidade não existe, a não ser para as máquinas. A todo instante fazemos escolhas, que estarão ligadas às nossas experiências anteriores, à nossa visão de mundo. E mesmo ao optar por uma palavra ou outra (golpe ou revolução, por exemplo), estamos emitindo a nossa opinião.

Agora, é incrível que um executivo da TV Globo diga publicamente que se trata de ‘ofensa gravíssima’ alguém supor que sua empresa possa perder ‘de vista os compromissos éticos e os trocou por objetivos políticos subalternos’. Por que, Kamel? Não haveria motivos no currículo da Globo que permitam tais suposições? Não se tratava de ‘objetivo político subalterno’ a participação direta da Globo na fraude que pretendia derrotar Leonel Brizola nas eleições de 1982 para o governo do estado do Rio de Janeiro? E o que dizer da edição tendenciosa do debate entre Lula e Collor em 1989? Ou das relações cordiais que a Globo manteve com os regimes ditatoriais, a partir de 1964? Não teria havido ‘objetivo político subalterno’ quando sua empresa apoiou abertamente a escolha do modelo japonês para a TV digital, bajulando na ocasião o mesmo governo que atacou nas vésperas da votação em primeiro turno? Na época aliviaram o quanto puderam a notícia divulgada pelo IBGE sobre insegurança alimentar no Brasil, que coloca 72 milhões de pessoas nos indicadores da fome no país…

E o que dizer do modo como os telejornais da TV Globo tratam o governo dos EUA? Embora seja um governo ilegítimo – eleito a partir de uma fraude – e que tenha promovido uma invasão ilegítima contra o Iraque, ceifando milhares de vidas inocentes, o telejornalismo global o trata como ‘a administração Bush’, quando na verdade é o maior regime terrorista de que a história tem notícia.

Mas, não. Que ninguém suponha que a TV Globo possa abdicar de sua nobre função de ‘informar com correção e imparcialidade’. Porque aí se trata de ofensa gravíssima.

Imprensa e as instituições

O problema do ‘caso dossiê’ não foi a exposição das fotos. Nisso a TV Globo tem razão. Exibir fotos de apreensão de dinheiro ou cocaína é procedimento-padrão. A questão é outra. A questão é ponderar com precisão até onde vai a exposição das fotos e onde começa sua superexposição, com ares de escândalo, o que naturalmente causará impacto eleitoral. E aí entra outra questão espinhosa para a TV Globo, sobre a qual lanço um desafio público: debater o atual modelo de comunicação brasileiro, atualmente controlado por um oligopólio, o que contraria a Constituição Federal.

Essa é a grande questão. Porque se o setor não fosse dominado por um oligopólio talvez nem estivéssemos discutindo a atitude do delegado Bruno. Vivesse o Brasil numa democracia midiática, com 40, 50 emissoras abertas, pertencentes aos mais diversos grupos da sociedade civil e em igualdade de condições econômicas, a história seria diferente. Porque aí, se uma delas (ou seis delas, como acontece hoje) resolvesse que as imagens do R$ 1,7 milhão são a coisa mais importante do mundo, outras seis poderiam achar que a privatização da Vale do Rio Doce e de outras empresas do povo brasileiro foi um escândalo maior; outras sete poderiam achar que a auditoria da dívida pública, conforme prevê a Constituição, é o assunto mais premente; de repente, outras cinco destacariam e lei de remessa de lucros e outras poderiam falar, quem sabe, sobre os leilões que entregam o petróleo brasileiro a preço de banana.

E aí o cidadão brasileiro estaria livre para escolher, ele mesmo, qual o assunto mais importante entre um leque democrático de opções. E nenhuma emissora teria o poder de interferir no processo eleitoral, sendo este permeado pela totalidade das emissoras dissociadas entre si.

Assim é que funciona a democracia: quando há liberdade de imprensa, mas a imprensa não é capaz de determinar o funcionamento das instituições. E desse privilégio a TV Globo não quer abrir mão.

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Editor do fazendomedia.com