Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um ataque de banalidade aguda

Não se deu atenção suficiente à notícia, publicada em vários jornais, de que o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação do Governo, Luis Gushiken, recebeu em seu gabinete o consultor americano Stephen Covey, autor do livro Os sete hábitos das pessoas altamente eficazes. Até aí, tudo normal, nada impede qualquer cidadão de conversar em caráter privado com quem bem lhe apraz, à hora que queira. A questão é que, para a imprensa, o encontro teve caráter público: ‘Em meio a tentativas frustradas de acabar com os tiroteios ministeriais que paralisam a Esplanada e aos números desfavoráveis das pesquisas, a esperança do governo agora parece ser a auto-ajuda’ (O Globo, 1º/4/2004).

A questão assume, assim, foros de problema. Covey, especialista em auto-ajuda, presta serviços a empresas e já trabalhou para o ex-presidente dos EUA Bill Clinton, assim como para o presidente do México, Vicente Fox, entre outros dirigentes políticos. Segundo ele próprio relatou aos jornalistas, aqui está um de seus principais conselhos a Gushiken: ‘É preciso muita integridade, humildade e paciência para se chegar a um bom nível de comunicação e sinergia dentro de um governo e até no relacionamento com a oposição. Às vezes, é preciso ceder, deixar o outro ganhar. E mesmo quando não há concordância, é preciso lealdade e respeito mútuo’.

Alguma novidade, alguma informação nova? Evidentemente, não, quando se pensa no volume de enunciados dessa ordem despejados nos últimos anos sobre o público-leitor, por meio de colunas jornalísticas ou de best-sellers, a título de auto-ajuda. Entre Lair Ribeiro e Paulo Coelho, há um oceano de subliteratura com tintas paracientíficas ou pararreligiosas, cimentando um novo tipo de senso comum e, claro, construindo fortunas editoriais. Mas isto não deve ser motivo de ressentimento, nem mesmo de cuidados especiais, por parte de ninguém. O texto de auto-ajuda é um fenômeno de mercado, nem melhor, nem pior do que a maior parte dos editoriais e colunas que labutam ao redor do senso comum em jornais e revistas, com pretensões de seriedade opinativa.

É desejável, no entanto, alguma aproximação crítica sobre a natureza desse fenômeno. Pode-se lançar mão, por exemplo, da categoria intitulada ‘saber irradiado’ pelo francês Marc Guillaume, um ensaísta que tem escrito textos pertinentes sobre economia e sociedade contemporâneas. Para ele, o ‘saber irradiado’ é um tipo de conhecimento externo àqueles que o recebem:

‘Quanto mais esforços de assimilação, mais lentos os processos de aquisição; as informações circulam em fluxos contínuos, é preciso estar ligado para captá-las distraidamente; para as necessidades profissionais, as memórias externas, as máquinas ‘de pensar em conjunto’ servem de interfaces. O saber se dissocia da formação do espírito.’

Ou seja, neste caso, não existe um saber comum ou um ‘lugar comum’ do saber que crie uma coesão e uma identidade comunitária para a circulação das informações. Esse lugar comum pode ser a escola, a instituição acadêmica ou científica, até mesmo a rádio ou a televisão, quando estavam na posição de monopólio informacional e podiam dispensar uma espécie de ‘meta-informação’ (abrangente e explicativa) sobre o mundo.

Conversa de tia velha

Mas quando os centros de informação se multiplicam, diz Guillaume, até mesmo aquele laço indireto tende a desaparecer. Surge a questão sobre o que as massas recebem, guardam e pensam.

‘Para remediar a fragmentação, os meios de comunicação ficam próximos uns dos outros, citam-se entre si, tornando-se mídia da mídia, ‘mídia ao quadrado’ (Umberto Eco). É também por isto que as pesquisas e as sondagens se multiplicam; sob a pressão das populações de pesquisadores, especialistas de marketing, homens de mídia e políticos, as massas são intimadas a dizer suas necessidades, entregar seus segredos, delegar suas vontades. As informações assim recolhidas são tratadas por todas essas instâncias de saber e de poder, mas também ‘reapresentadas’ à massa’.

Esse saber ‘irradiado’ supõe uma espécie de centro tecno-simbólico, que no entanto é vazio de um saber comum, capaz de encarnar legitimamente a comunidade. A anomia do conhecimento toma o lugar da identidade e da responsabilidade sociais. E é precisamente nesse espaço anômico que se desenvolvem os discursos compensatórios da auto-ajuda, repletos da tradição moralista da responsabilidade e da nostalgia vaga das comunidades do passado, onde haveria um lugar comum do saber. Tais discursos circulam com diferentes graus de qualidade.

Quando isto se limita ao mercado e ao seu jogo autônomo de formação de público consumidor, a questão pertence aos sociólogos, aos educadores ou aos críticos da cultura. Preocupante para o observador da imprensa é constatar que autoridades governamentais dão ouvidos a redundâncias e platitudes, como se fossem enunciados pertinentes sobre questões sérias da vida nacional. Um exemplo é associação feita pela imprensa entre um conselho de Stephen Covey a Gushiken e as intrigas do PT e do governo Lula: ‘É muito ruim quando você trabalha com alguém, conversa e daí a pouco sai e fala mal dela. Não se deve falar mal pelas costas nem da oposição, pois isto viola o princípio do respeito mútuo. Se você fala, perde a autoridade moral, que é o coração da liderança’.

Não há grande consolo em tomar conhecimento de que ainda não foram contratados os serviços de Stephen Covey. Já é acabrunhante saber que o representante de um ‘núcleo duro’ de governo que mal tem tempo para receber parlamentares, quando não os próprios colegas ministros, encontra espaço na agenda pública para a tautologia da auto-ajuda. É francamente exasperante a banalidade desse tipo de fala em momentos tão duvidosos da vida nacional. Como levar a sério quem leva a sério essa conversa de tia velha?

******

Jornalista, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro