Sem as aptidões para teorizar sobre o tema deste Painel prefiro apresentar um caso de estudo – a história do Observatório da Imprensa – que, ao menos sob a ótica da longevidade e sobrevivência, pode oferecer algumas constatações e sugestões.
Por que e para que discutir a imprensa? Repetiam-se em 1994, no Brasil, as circunstâncias que nos Estados Unidos, 20 anos antes, haviam projetado o media-watching (a observação da mídia) além da esfera acadêmica. Com o caso Watergate, os meios de comunicação americanos iniciaram um intenso processo de auto-avaliação. Na renúncia de Fernando Collor de Melo a mídia, sobretudo a impressa, também desempenhou um papel crucial sem que este fosse devidamente analisado e discutido.
Nunca é demais repetir que sem uma imprensa minimamente responsável e competente a democracia não se sustenta. E uma imprensa concentrada e autocentrada, avessa à exposição de seus problemas, jamais conseguirá a necessária credibilidade para converter-se em espelho e alavanca da sociedade.
Começamos numa universidade pública, a Unicamp, com o pomposo nome de Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor). Para compensar a pouca ou quase nenhuma vivência acadêmica do núcleo inicial de jornalistas, convidamos como coordenador o reitor da própria universidade, o professor Carlos Vogt, que deixava o seu cargo naquele momento.
E por que uma universidade pública? Em primeiro lugar, porque a Unicamp é uma universidade pública avançada, de vanguarda. Em segundo lugar, porque as universidades privadas não tinham em 1994 qualquer vocação para projetos de qualificação profissional na área do jornalismo, situação que em 2007, treze anos depois, mantém-se rigorosamente inalterada. Ou talvez até piorada.
E por que razão não foram procuradas as grandes empresas jornalísticas que seriam diretamente beneficiadas por um programa de qualificação e excelência? Simples: a insensata rivalidade pessoal e empresarial não permitiria reunir os principais veículos num projeto conjunto. A não ser que fosse corporativo, em formato de pool como era o caso da Associação Nacional de Jornais (ANJ). Se a Editora Abril apoiasse o projeto, os grupos Globo, Estado ou Folha não entrariam. Se fosse a Folha o apoiador os demais ficariam de fora.
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Primeira conclusão: as empresas jornalísticas brasileiras só se agregam em situações-limite, quando acossadas por algum perigo. Em outras palavras, só se juntam como lobby.Não pretendíamos criar mais um curso de graduação ou pós-graduação em jornalismo, nem um centro de estudos puramente acadêmico. A idéia era criar uma incubadora de projetos de excelência jornalística capaz de contrapor-se à influência da Universidade de Navarra e à consultoria por ela criada, a Inovación, com sede em Miami. Ambas eram muito solicitadas pelas empresas jornalísticas brasileiras e ibero-americanas pela total desatenção para avaliações críticas ou de conteúdo. Navarra até hoje continua fixada no ‘produto’ (embalagem, atendimento ao ‘mercado’, doutrinação de editores) sem qualquer preocupação com as diferenças entre empresas e públicos e, por conseguinte, sem preocupação com a pluralidade.
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Segunda conclusão: as empresas jornalísticas brasileiras não se preocupam com a natureza singular da atividade jornalística que combina um empreendimento empresarial – portanto, um negócio – com uma atividade sociopolítica garantida pela Constituição. Acreditavam (e ainda acreditam) que a sua credibilidade junto à sociedade seria automática e eterna – qualquer que fosse a qualidade da informação que oferecessem.O objetivo do Labjor era a qualificação. A saber:
1.
Qualificação do segmento profissional na sua origem, a universidade.2.
Qualificação do mercado oferecendo às empresas (pequenas, médias ou grandes) projetos customizados e capazes de oferecer melhores conteúdos e assim melhor servir aos seus públicos.3.
Qualificação do público leitor para torná-lo mais exigente e menos resignado.Não é aqui o lugar para fazer o balanço das atividades do Labjor, mas vale lembrar que organizamos em Campinas um curso de extensão para professores de jornalismo de todo o país que, de tão bem-sucedido, nas sessões finais os professores-alunos decidiram criar uma associação nacional de docentes para implementar os conceitos lá discutidos.
Não conseguimos sensibilizar as empresas para grandes projetos de melhoria de conteúdo ou excelência jornalística porque este era um tipo de problema inexistente naquele momento. Estavam fixadas no aumento da circulação, diminuição do consumo do papel e dos custos (inclusive na ‘juvenilização’ das redações – quanto mais experientes e mais velhas, mais caras), e na adoção de novos modismos gráficos ou de marketing. Não imaginavam que uma década depois, sua própria atividade (o jornalismo impresso), justamente pela incapacidade de reinventar-se, estaria com a sua sobrevivência ameaçada.
Na impossibilidade de atuar de forma endógena recorremos a um programa exógeno destinado a atender nosso terceiro objetivo: a qualificação da audiência. Tirar o consumidor da sua posição passiva para convertê-lo num agente ativo, exigente, efetivamente transformador. Pressentíamos as dificuldades: não havia modelos para servir de referência, não havia recursos para criar um veículo de comunicação destinado a transferir uma postura crítica a uma parcela do público e, a partir dela, influir na qualidade e atitudes da mídia.
A alternativa foi sugerida pela falta de alternativas. A internet, que naquele momento dava os seus primeiros passos no Brasil, poderia servir como experiência. Assim, em 1996, dois anos depois da sua criação, o Labjor foi praticamente empurrado para uma experiência revolucionária. Éramos detentores de um nome, o Observatório da Imprensa, o nome nos ofereceu um conceito – a observação como forma indireta de intervir num processo – e ambos nos encaminharam para uma nova tecnologia que prometia altos índices de participação e custos insignificantes.
Em abril de 1996, criamos uma página na internet, sem qualquer periodicidade. Graças ao nosso provedor, o Instituto Universidade-Empresa (Uniemp), nos habilitamos junto ao Comitê Gestor da Internet do Ministério da Ciência e Tecnologia para obter um estipêndio microscópico dentro do seu programa de estimular o uso da internet em projetos sociais.
Logo adotamos a periodicidade quinzenal e neste mesmo ano, quando o Universo Online (UOL), do Grupo Folha, começou a decolar, estávamos hospedados nele, porém sem qualquer tipo de pagamento pelo conteúdo que oferecíamos. Depois passamos a semanais, hoje somos um diário especializado em mídia hospedados em outro provedor, o iG.
Apesar de um tímido apoio da Volkswagen (graças ao então vice-presidente Corporativo, o jornalista Miguel Jorge, hoje ministro do Desenvolvimento) não encontramos na iniciativa privada o suporte para manter uma instituição autônoma criada, em última análise, para funcionar como estímulo para o desenvolvimento empresarial.
Ao longo de 11 anos tivemos apenas uma dúzia de contratos para a veiculação de banners em nosso site. Por razões deontológicas e estatutárias, não poderíamos aceitar banners ou apoios de empresas de comunicação, o que comprometeria a nossa independência e colocaria em dúvida a nossa credibilidade.
As agências de propaganda não se mostravam animadas em programar anúncios num site que, teoricamente, disseminava uma visão crítica da mídia. Apenas uma delas, a W/Brasil, ousou oferecer um contrato experimental de três meses. Os grandes grupos empresariais, que não necessitam da mídia para vender seus produtos ou serviços, não estavam nem estão motivados para apoiar iniciativas que, à primeira vista, parecem subversivas, antiestablishment ou avançadas demais.
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Terceira conclusão: a iniciativa privada no Brasil não consegue enxergar-se como vanguarda ou pioneira. Prefere andar no reboque. Há um receio generalizado em apostar em projetos com alguma carga crítica.O salto para o futuro foi propiciado por uma entidade pública ou, para sermos mais precisos, uma entidade estatal comprometida com o interesse público. Em fins de 1997, pouco mais de um ano depois da criação do site, a TVE do Rio de Janeiro propôs a criação de um programa semanal de TV ‘parecido’ com o site.
Nossa resposta: parecido não, terá que ser igual. Em maio de 1998 começava um programa semanal, em rede nacional, ao vivo, chamado Observatório da Imprensa. Completou agora nove anos consecutivos de existência. Abstenho-me de comentar os atributos do programa, prefiro mencionar as dificuldades. A principal delas: em nove anos, quase uma década, não foi possível persuadir as duas redes de TV ditas ‘publicas’, a mesma TVE do Rio e a Rede Cultura, de São Paulo, a juntarem os seus recursos para melhorar a qualidade técnica e ampliar a audiência de um programa único na grade da TV brasileira. Sequer a transmissão simultânea foi mantida. Por quê? Simplesmente porque uma rede pertence à esfera do governo federal e a outra pertence à esfera do governo de São Paulo.
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Quarta conclusão: mesmo quando comprometidas com o interesse público, organizações com vínculos políticos diferentes não conseguem manter algum tipo de convergência, parceria ou compartilhamento capaz de sustentar projetos comuns, desenhados para atender às respectivas razões de ser.Há dois anos, o Observatório da Imprensa deu um novo passo no sentido de levar a discussão sobre a qualidade da mídia a novas parcelas da sociedade. Em maio de 2005 começou a versão radiofônica, diária, gerada pela Radio Cultura FM de São Paulo e retransmitida pela Rádio MEC do Rio de Janeiro e a Rádio Nacional em Brasília. Aqui foi possível obter a convergência de três redes de radiodifusão.
Como explicar o milagre? O projeto foi viabilizado por uma doação da Fundação Ford. As emissoras transmissoras recebiam um programa pronto, de qualidade, sem gastar ou gastar muito pouco.
Convém lembrar que a Fundação Ford foi a responsável pela implantação da PBS (Public Broadcast System) nos Estados Unidos e pela entrada da BBC, conglomerado britânico de mídia, também público, no mercado americano.
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Quinta e última conclusão: a iniciativa e a criatividade brasileiras, temas deste Fórum, foram insuficientes para materializar um projeto destinado à qualificação das audiências e a melhoria dos seus padrões de exigência. Ao longo de mais de uma década, a qualidade da mídia e a qualidade da democracia não conseguiram seduzir nem a iniciativa privada nem a esfera pública. Graças a um parceiro não-brasileiro, porém vocacionado para identificar oportunidades na esfera da mídia pública nos países onde atua, foi possível dar sustentação a um projeto inédito e cujo mérito talvez tenha sido apenas o de sobreviver o tempo suficiente para converter-se num caso de estudo.