Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um dia comum na terra do Pan



** ‘Jovem de 13 anos é morto no Borel’


** ‘Assassino, um menor, teria atirado só por ainda não haver matado ninguém no dia’.


A notícia foi parar na editoria Rio de O Globo (terça-feira, 1/5) e não mereceu sequer a manchete da página 13 (esta foi dedicada ao roubo de documentos do presidente da Confederação Brasileira de Esgrima).


Título, subtítulo e a até a magnífica foto de Lucíola Villela, mostrando a dor de parentes no enterro do menino, parecem tirados de uma comédia de mau gosto. Mas expressam a tragédia do cotidiano do Rio de Janeiro. A realidade descrita pela matéria logo a seguir. O menor-assassino estava ‘entediado’. Pegou uma arma emprestada de um traficante. ‘Em seguida teria alegado que naquele dia ainda não matara ninguém. Por isso atirou’.


Deixaria de atirar se fosse passível de punição, se a maioridade penal o abrangesse? Talvez, mas isso não é o mais intrigante. Notável é o reconhecimento pela própria mídia (expresso pelo tratamento dado à noticia pelo jornal mais importante do Rio) da pouca importância de um fato que em qualquer país do mundo abalaria a sociedade – mas que no Brasil se tornou tão banal que quase nem vira noticia.


Camuflagem sedimentada


O Rio de Janeiro vive um estado de barbárie que não encontra paralelo em qualquer outra região do mundo em tempos de paz. Berço dos mais importantes movimentos culturais do país, a cidade é hoje terra arrasada. Detém uma das piores qualidades de vida do planeta e é possível que jamais se recupere do que lhe aconteceu.


Escamotear isso equivale a odiar a cidade. Quem a ama gostaria de vê-la de outra forma. Na pior das hipóteses, de recuperar o Rio de Janeiro de 40, ou mesmo 20 anos atrás. A classe política não precisou mais do que isso para devastar uma cidade que já foi extraordinariamente pujante.


Ao se envolver sem restrições em campanhas hipócritas por eventos que vendem produtos ou votos – entre os quais, sim, se incluem os Jogos Pan Americanos – a mídia está fazendo a sua parte para cristalizar essa situação. Age como se nada estivesse acontecendo, como se loucos fossem os que se espantam com o fato de um menor sair matando porque neste dia ainda não matou ninguém.


Os grandes eventos esportivos, os shows de rock, até aviõezinhos voando baixo, tudo isso é parte da rotina de qualquer grande cidade. Movimentam dinheiro e não há nada de intrinsecamente errado nisso. Mas a mídia pode fazer com que todos esses eventos se tornem danosos. Faz isso quando colabora para sedimentar a camuflagem que eles promovem sobre uma situação que é desesperadora – pelo menos para quem não pode pagar por cercas, guaritas, seguranças, carros blindados e toda a simpática parafernália que substituiu um cantinho e um violão.


Em meio a ruínas


Em 1933, quando chegou ao poder, Hitler já tinha planos para as Olimpíadas de 1936, que o Comitê Olímpico Internacional havia garantido a Berlim desde 1931. O Führer estava disposto a transformar os jogos num evento estritamente político, o que jamais havia acontecido. Mesmo os soviéticos, com sua formidável máquina de propaganda, nunca tinham participado de Olimpíadas (o que só viria a acontecer em 1952).


Richard Strauss foi chamado a compor o Hino Olímpico. Leni Riefenstahl, que já contabilizava os frutos de Triunfo da Vontade, recebeu carta-branca e um caminhão de dinheiro para produzir Olympia – Os Deuses dos Estádios, com 300 mil metros de filme. Os cartazes anti-semitas foram escondidos às pressas e até o semanário racista Der Strümmer foi retirado de circulação.


Jesse Owens e seus conterrâneos negros derrotaram o ideal da raça pura, mas os Jogos Olímpicos de Berlim levaram ao paroxismo o uso da chama olímpica para os mais nefastos fins de dissimulação da realidade. A mídia foi um alicerce para isso. Os jornais nazistas da Alemanha, controlados por Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, omitiram sistematicamente todas as notícias referentes às vitórias dos negros americanos no atletismo.


Qualquer foto do imponente Estádio Joao Havelange, sendo erguido no Engenho de Dentro em meio às ruinas do que um dia foi uma cidade habitável, fala por si. É impossível ver o estádio sem ver o que acontece ao seu redor. Mas se a mídia não se espantar com o que acontece no Rio, ninguém se espantará. E se ninguém mais se espantar, o Rio não vai simplesmente desaparecer: a historia não o lembrará com saudade.


Mar de favelas


A mídia brasileira não pode escamotear o que se passa na cidade que sediará o Pan, como a mídia de Goebbels se calou diante das vitorias de Owens. O Pan é um bom momento para se falar do Rio. Quem desprezar a cidade e quiser que ela morra mais rapidamente, fará bem em vender por alguns dinheiros a mística do samba, mulata e futebol.


Quem se importar com a cidade, pode fazer o contrário do que os nazistas fizeram antes e depois de 1936 – e alertar a comunidade internacional para a tragédia que se instalou na cidade do Engenhão.


João Hélio Fernandes, o menino de 6 anos arrastado vivo por 15 minutos e dilacerado por bandidos em fevereiro deste ano, não pode ser um simbolo efêmero. A emoção que ele causou durou até o Canaval. Gerou a sua ridícula cota de camisetas brancas e lençóis com a inscrição ‘Paz’. Mas João Helio é a regra, não a exceção. Não é a emoção do dia. Não pode ser tratado como a final de um campeonato de futebol.


João Hélio é o Rio de Janeiro que se ergue todos os dias diante dos nossos olhos, com mais clareza que um estádio que brota em meio a um mar de favelas. Há muitos iguais, diariamente, numa cidade onde um menor que mata porque ainda não havia matado naquele dia vai parar num canto de página: sua história já não é capaz de espantar ninguém.

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Jornalista e diretor de TV