Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Um ersatz

(*) De acordo com o Aulete Digital, ‘ersatz’ é o “substituto artificial de um elemento natural, ou substituto natural, de qualidade inferior, de outro elemento natural (p. ex. sacarina por açúcar); coisa não genuína, pouco semelhante a outra; sucedâneo".

Entre as centenas de chamadas telefônicas e e-mails recebidos, escolho uma. “Não posso acreditar. Estou tão angustiada e com tanta raiva que não sei o que fazer. Conseguiu o que queria. Estou vendo Orlando em casa, na sala de jantar, alguns anos atrás, dizendo ‘Ele quer ser papa’. É a pessoa indicada para esconder a podridão. Ele é especialista em tapar as coisas. Meu telefone não para de tocar. Fito me ligou chorando.” Está assinado Graciela Yorio, irmã do sacerdote Orlando Yorio, que denunciou Jorge Mario Bergogliocomo responsável pelo seu sequestro e pelas torturas que sofreu durante cinco meses, em 1976. Fito, a quem Graciela se referiu, é Adolfo Yorio, seu irmão. Ambos dedicaram muitos anos de suas vidas a continuar as denúncias de Orlando, teólogo e padre terceiro-mundista que morreu em 2000 sonhando com o pesadelo que na quarta-feira (13/3) se tornou realidade. Três anos antes, o protagonista de seu pesadelo havia sido designado arcebispo-adjunto de Buenos Aires, o que já era um prenúncio do que se seguiria.

Orlando Yorio não chegou a tomar conhecimento da declaração de Bergoglio perante o Tribunal Oral Federal 5. Disse que recentemente soubera da existência de crianças sequestradas, depois de terminada a ditadura. Mas o Tribunal Oral Federal 6, que julgou o plano sistemático de sequestro de filhos de detidos-desaparecidos, recebeu documentos que indicam que já em 1979 Bergoglio estava a par e interveio em pelo menos um caso, por solicitação do superior-geral, Pedro Arrupe. Ao escutar o relato dos familiares de Elena de la Cuadra, sequestrada em 1977 quando estava grávida de cinco meses, Bergoglio entregou-lhes uma carta para o bispo-auxiliar de La Plata, Mario Picchi, pedindo-lhe que intercedesse junto ao governo militar. Picchi averiguou que Elena dera à luz uma menina, que fora doada a outra família. “Ela está muito bem com esse casal e não há como voltar atrás”, informou Picchi à família.

Lutas internas da cúria romana

Ao fazer seu depoimento por escrito por ocasião do processo da ESMA (Escola Superior de Mecânica da Marinha, sigla em espanhol) pelo sequestro de Yorio e do também jesuíta Francisco Jalics, Bergoglio disse que no arquivo do episcopado não existiam documentos sobre os detidos-desaparecidos. Mas seu sucessor – e atual presidente – José Arancedo enviou à juíza Martina Forns cópia do documento que publiquei sobre a reunião do ditador Jorge Rafael Videla com os bispos Raúl Primatesta, Juan Aramburu e Vicente Zazpe, na qual falaram com extraordinária franqueza sobre dizer ou não dizer que os detidos-desaparecidos haviam sido assassinados, pois Videla queria proteger os que os mataram.

Em seu clássico livro Iglesia y ditadura, Emilio Mignone menciona Bergoglio como paradigma de “pastores que entregam suas ovelhas ao inimigo sem defendê-las ou resgatá-las”. Bergoglio contou-me que em uma de suas primeiras missas como arcebispo viu Mignone e tentou aproximar-se dele para lhe dar explicações, mas o presidente e fundador do CELS (Centro de Estudios Legales y Sociales) levantou a mão, indicando-lhe que não se aproximasse.

Não tenho certeza de que Bergoglio tenha sido eleito para tapar a podridão que reduziu à impotência Joseph Ratzinger. As lutas internas da cúria romana seguem uma lógica tão inescrutável que os fatos mais obscuros podem ser atribuídos ao espírito santo – das manobras financeiras devido às quais o Banco do Vaticano foi excluído do clearing internacional por não cumprir as regras para controlar a lavagem de dinheiro, às práticas pedófilas em quase todos os países do mundo que Ratzinger encobriu quando estava no Santo Ofício e pelas quais pediu perdão como pontífice. Nem sequer estranharia que, com uma brocha na mão e a sola dos sapatos gasta, Bergoglio empreendesse uma cruzada moralizadora para branquear os sepulcros apostólicos.

O discurso populista

Mas do que tenho certeza é que o novo bispo de Roma será um ersatz, essa palavra alemã que nenhuma tradução faz por merecer, um sucedâneo de menor qualidade, como a água com farinha que as mães indigentes usam para enganar a fome de seus filhos. O teólogo brasileiro da libertação Leonardo Boff, excluído por Ratzinger do ensino e do sacerdócio, tinha a ilusão de que pudesse ser escolhido o franciscano descendente de irlandeses Sean O’Malley, responsável pela diocese de Boston, quebrada pelo número de indenizações que pagou a crianças vítimas de abuso de sacerdotes. “Trata-se de uma pessoa muito vinculada aos pobres porque trabalhou muito tempo na América Latina e no Caribe, sempre em meio aos pobres. É sinal de que pode ser um papa diferente, um papa de uma nova tradição”, escreveu o ex-sacerdote.

Na Cadeira Apostólica não se sentará um verdadeiro franciscano, e sim um jesuíta que se fará chamar Francisco, como o pobrezinho de Assis. Uma amiga argentina me escreve atordoada, de Berlim, dizendo que para os alemães, que desconhecem sua história, o novo papa é terceiro-mundista. Uma pequena confusão.

Sua biografia é a de um populista conservador, como o foram as de Pio 12 e de João Paulo 2º, inflexíveis em questões doutrinárias, mas com uma abertura para o mundo, em especial para as massas despossuídas. Quando rezar sua primeira missa numa rua de Roma e falar das pessoas exploradas e prostituídas pelos poderosos insensíveis que fecham seus corações a Cristo; quando os jornalistas amigos contarem que viajou de metrô ou de ônibus; quando os fiéis escutarem suas homilias recitadas com os trejeitos de um ator e nas quais as parábolas bíblicas coexistirem com a simplicidade do povo, haverá quem delire por uma desejada renovação eclesiástica. Nos quinze anos que está à frente da arquidiocese de Buenos Aires fez isso e muito mais. Mas ao mesmo tempo tentou unificar a oposição contra o primeiro governo que, em muitos anos, adotou uma política favorável a esses setores e o acusou de tenso e de buscar o confronto, pois para fazê-lo teve que lidar com aqueles poderosos fustigados no discurso.

Agora poderá fazê-lo em outra escala, o que não significa que se esqueça da Argentina. Se Eugenio Pacelli [o papa Pio 12] recebeu financiamento dos serviços secretos norte-americanos para reforçar a democracia cristã e impedir a vitória comunista nas primeiras eleições do pós-guerra, e se Karol Wojtyla [João Paulo 2º] foi a alavanca que abriu o primeiro rombo no muro europeu, o papa argentino poderá cumprir o mesmo papel em escala latino-americana. Seu passado de militância na Guarda de Ferro e o discurso populista que não esqueceu – e com o qual poderia, inclusive, adotar causas históricas, como a das Malvinas – o habilitam para disputar a orientação desse processo, para invocar os exploradores e pregar a mansidão aos explorados.

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Nota do Observatório: No livro Un mundo sin periodistas – las tortuosas relaciones de Menem con la prensa, la ley y la verdad (Planeta, 1998), de Horacio Verbitsky, há uma epígrafe assinada pela jornalista mexicana Alma Guillermoprieto nos seguintes termos:

Parecía casi ofendido cuando lo comenté que se veía muy feliz en estos días. “La felicidad es para cosas más serias”, respondió. Como periodista, al menos, Verbitsky ha recibido la bendición de una incapacidad casi absoluta para ver el lado bueno de cualquier situación. [The New Yorker, 15/7/1991]

Sobre as relações amistosas entre a igreja católica argentina e os governos militares que se sucederam entre 1976 e 1983 no país vizinho, Verbitsky publicou as seguintes obras:

>> El Silencio. De Paulo VI a Bergoglio. Las relaciones secretas de la Iglesia con la ESMA(Editorial Sudamericana, 2005)

>> Historia política de la Iglesia Católica(Editorial Sudamericana, 2006 e 2007)

Tomo I – Cristo Vence: de Roca a Peron

Tomo II – La violencia evangélica: de Leonardi al Cordobazo

>> Doble Juego: la Argentina católica y militar(Editorial Sudamericana, 2006)

Em todos os seus livros sobre o assunto, Verbitsky faz uma advertência nas primeiras páginas:

En las páginas que siguen no se encontrará ningún juicio de valor sobre el dogma ni el culto. Sólo un análisis del comportamiento de la Iglesia Católica Apostólica Romana como “realidad sociológica de pueblo concreto en un mundo concreto”, según los términos de la propia Conferencia Episcopal Argentina. En cambio su “realidad teológica de misterio” sólo corresponde a los creyentes, que merecen todo mi respeto.

Clique aqui para ler a introdução do livro El Silencio (em espanhol).

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Horacio Verbitsky é jornalista e escritor