Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um ‘estado de acomodação’ bem temperado

A economia voa em ‘céu de brigadeiro’ enquanto passageiros são martirizados no ‘inferno’ da aviação nacional, sem mencionar a insensatez das declarações de autoridades governamentais quanto à interminável crise. No Senado, tem sido encenada uma comédia capaz de tornar Moliére mero aprendiz. Em meio a taxas de desemprego, empresas nacionais acusam postos vagos por falta de profissionais qualificados. Corrupção é constatada nos mais diversos setores da vida brasileira, afora os que ainda não foram contemplados. Não se trata de roteiro para filme de terror. O quadro reflete tão-somente o enredamento de um país atolado em descompassos. Mesmo parte da mídia que teria algum interesse em fazer oposição não precisa recorrer a estratégias sofisticadas, em razão da oferta diária de acontecimentos absolutamente insólitos. A mídia, sem nenhum esforço, os registra.

Fico imaginando que noticiário a ‘mídia opositora’ geraria se nada do que consta no parágrafo anterior existisse? Bem, nesse caso, talvez, a mídia talvez devesse investigar melhor a tal ‘economia em céu de brigadeiro’. Assim sendo, a mídia revelaria a existência de setores da economia que se encontram à beira de colapso, incluindo crescente índice de demissões e falências. Publicar-se-ia longa reportagem sobre prejuízos acumulados na indústria têxtil, nas fábricas de calçados, na perda progressiva de mercado em tecnologia de ponta, a exemplo da informática e outros. Todavia, a mídia, sempre acusada por segmentos atormentados (ou temerosos), de tramar contra o ‘governo da redenção’, trata tais temas (quando os aborda) com invejável timidez. A prova do que afirmo é constatável na vida cotidiana. A maioria da população não tem essas informações. É bem verdade que também a maioria da população não sabe ‘onde’ fica esse tal de ‘céu de brigadeiro’. A maioria, nos noticiários, apenas ouve (ou lê) que a ‘economia vai bem’ e a ‘inflação está sob controle’. E assim a vida segue.

Brasil não é Venezuela

Houvesse, no Brasil, efetiva mídia opositora, não faltariam matérias, com chamadas em primeira página, sobre expressivas verbas contingenciadas em setores vitais do país, a começar pelos sistemas aeroviário e rodoviário, passando por segurança nacional (fronteiras), investimento em funcionalismo público, descaso quanto à política habitacional, inépcia na formulação de reais programas de investimento e gastos crescentes em publicidade. A bem da verdade, no Brasil não há oposição, seja na mídia, seja na política. O que há mesmo é uma atmosfera de acomodação, estado próprio de uma sociedade que perdeu o sentido de projeto histórico. Não olha para o passado, pois receia os fantasmas que por lá ficaram. Não olha para o futuro porque nada enxerga à frente. Resta apenas o mais imediato presente e, com esse, nada além do prazer primário de viver o dia de hoje. Não faltarão, porém, vozes que, saídas das tumbas do patrulhamento, soarão suas trombetas em favor da radical defesa pelo ‘estado de acomodação’. Para tanto, virão retóricas desnudando todos os ‘demônios’ que habitam os jornais, as emissoras de TV, forças empenhadas na demolição do ‘governo da redenção’.

No Brasil, diferentemente do que se deu na Venezuela, o governo não se preocupa com a mídia. Aqui, as partes envolvidas (governo e mídia) bem sabem o limite em que devem atuar. Há uma razoável cumplicidade em deixar a ‘água’ sempre morna. É a temperatura ideal para o necessário ‘estado de acomodação’. A mídia, ao informar que, por exemplo, nunca houve, no Brasil, um governo com 38 ministérios, não irá fazer nenhuma cobertura a respeito da inutilidade de tantos ministérios. Assim é que se regula a ‘temperatura da água’.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)