Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um exercício do duplipensar orwelliano

Em novembro último, um parecer do Conselho Nacional de Educação recomendou que, para ser adquirida pelo MEC (com dinheiro público, portanto), distribuída a escolas públicas e apresentada em sala de aula, a obra Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, deveria ser ‘contextualizada’, já que apresentava uma série de expressões racistas dirigidas à personagem Tia Nastácia (‘negra suja’, ‘negra beiçuda’, ‘macaca de carvão’) pela simpática boneca Emília. A grande imprensa, contudo, dando continuidade a uma prática que vem sendo amplamente adotada na cobertura da discussão sobre ação afirmativa e cotas na universidade, prontamente traduziu ‘contextualização’ em ‘veto’ e ‘censura’. Com base nesses termos – e sem se darem ao trabalho de ler o parecer –, intelectuais respeitáveis acorreram em defesa do festejado autor, supostamente ameaçado por fanáticos da correção política. Desnecessário acrescentar que intelectuais igualmente respeitáveis, mas com opiniões opostas, não tiveram vez no ‘debate’.

Foi nesse clima que o cartunista Ziraldo resolveu ilustrar a camiseta do bloco carnavalesco Que Merda É Essa com um desenho de Lobato, com cara de quem não está entendendo nada, abraçado a uma mulata. Em entrevista, Ziraldo pontificou: ‘Racismo sem ódio não é racismo.’ A posição de Ziraldo foi rebatida numa carta aberta a ele dirigida pela escritora Ana Maria Gonçalves em que esta apresenta uma série de manifestações racistas do próprio Lobato, algumas delas surpreendentes, mesmo para os padrões da época em que foram escritas, como o lamento pela ausência de uma Ku-Klux-Klan em nosso país. Mostra-nos ela que Lobato era um militante da eugenia, pseudociência associada às raízes do nazismo que, segundo ele, deveria ser difundida sutilmente pela escrita. As expressões racistas de Lobato foram bloqueadas pela grande imprensa no afã antiético de manipular a opinião dos leitores, só vindo à tona graças ao jornalista Arnaldo Bloch, que publicou algumas delas em sua página ‘Logo’, do jornal O Globo. Os defensores ardorosos de Lobato, contudo, ou assumiram a postura do avestruz, negando-se a considerar aquilo que o próprio Lobato pensava sobre o tema de raça, ou procuraram – procuram – justificá-lo pelo contexto histórico. Não deixa de ser irônico que essas pessoas, de modo geral, se alinhem entre os fãs de Gilberto Freyre, defensor supremo da mestiçagem, enquanto Lobato a considerava um obstáculo quase inexpugnável ao progresso da sociedade brasileira. Um belo exercício do duplipensar orwelliano…

Honestidade intelectual

Toda essa polêmica constitui uma oportunidade ímpar para uma reflexão sobre a questão de raça no Brasil. Num paper apresentado num seminário sobre o papel da mídia nessa discussão, e depois publicado no Observatório da Imprensa, Muniz Sodré apresenta o seu diagnóstico sobre o comportamento de muitos brancos brasileiros, e particularmente de muitos intelectuais, diante da forma como o problema tem sido tratado nos últimos tempos: ‘nostalgia da escravidão’. A reação irada ao incômodo que é ver questionados não apenas seus próprios comportamentos e atitudes, mas o status quo que sempre lhes garantiu uma posição privilegiada numa sociedade em que a cor alva da pele é garantia de valiosos privilégios, tanto materiais quanto simbólicos.

O que essas pessoas não se deram conta é de que há algo de novo na paisagem intelectual e política brasileira. De simples objetos de estudo, um número considerável de negros trocou de posição no microscópio, passando a observar criticamente a sociedade e a produzir textos sobre o tema de raça, frequentemente legitimados pelos ritos acadêmicos. Vem se produzindo e divulgando, assim, uma visão que parte de outra perspectiva, a dos que se encontram na extremidade ‘receptiva’ da discriminação e do racismo, para não só apontar problemas que até ontem se ocultavam sob o manto da ‘democracia racial’, como sugerir medidas capazes de amenizá-los e, com o tempo, eliminá-los. A concretização de algumas dessas ideias, com o indispensável apoio de setores mais sensíveis da elite branca, tem provocado, em paralelo, reações muitas vezes irracionais, como algumas das que discutimos neste texto.

Há muitos oficiais do exército

Abusados, negros passaram a utilizar o conhecimento adquirido na academia para questionar os próprios intelectuais brancos que por longo tempo detiveram o virtual monopólio da discussão de raça no Brasil. Alguns deles têm dedicado parte do seu tempo e esforço à identificação de inconsistências e incongruências, que perceberam abundantes, no pensamento desses ‘mestres’, revelando como, em muitos casos, um discurso supostamente ‘científico’ funciona como disfarce ideal para a disseminação de verdades assentadas unicamente na ideologia. Como explicar, por exemplo, que estudiosos que ganharam prestígio e posições estudando o negro e sua cultura, e que reconhecem a existência do racismo e da discriminação, sejam capazes de negar a possibilidade de identificar quem pertence a esse grupo para fins de discriminação positiva? Como é possível negar com veemência a validade do conceito de raça, ainda que na sua acepção sócio-histórica, e simultaneamente tecer loas à nossa maravilhosa miscigenação, ou seja, a mistura das mesmas raças que se afirma não existirem? Provocações como essas costumam ficar no vazio, demasiadamente incômodas para serem respondidas. Mas não passam incólumes a quem tenha um mínimo de preocupação com essa coisa, aparentemente meio demodée, a julgar pelo comportamento Fox News da grande mídia brasileira e de seus leitores acríticos, denominada honestidade intelectual.

Ao desnaturalizar manifestações racistas profundamente entranhadas em nossa sociedade, a ponto de fazerem parte daquilo que Bourdieu chamava de habitus – atitudes e comportamentos pré-reflexivos, transmitidos, aprendidos e reproduzidos inconscientemente (como o costume de chamar de ‘negão’ um homem negro desconhecido, sem se preocupar com a possível reação do interpelado) –, os negros antirracistas e seus aliados brancos perturbam a falsa harmonia baseada nas relações de superioridade/inferioridade quotidianamente reforçadas, no plano simbólico, pela linguagem. A esse propósito, Joel Rufino dos Santos relatou, em seu livro O que é racismo?, um episódio revelador. Reproduzo de memória. Estava ele num estádio assistindo a uma partida de futebol quando um jogador negro fez uma jogada errada e alguém gritou: ‘Crioulo filho da puta!’ Como de hábito, isso não provocou nenhuma reação. Foi ‘natural’. Joel esperou até que um jogador branco cometesse um erro e replicou: ‘Branco filho da puta!’ Aí se instaurou o mal-estar. Um sujeito, então, aproximou-se dele e esclareceu: ‘Fui eu que gritei aquilo, mas não sou racista. Sou oficial do exército.’ Joel esperou até que outra manifestação natural antinegro ocorresse, o que não demorou muito, e comentou em voz alta: ‘Outro oficial do exército.’

Pois é, como vemos nesta discussão, há por aí uma quantidade enorme de oficiais do exército. Inclusive na mídia.

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Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFF, tradutor, autor de Na lei e na raça. Legislação e Relações Raciais, Brasil – Estados Unidos