O dramalhão encenado pela colunista Miriam Leitão, o apresentador Chico Pinheiro e o editor William Bonner, durante a entrega do Prêmio Ayrton Senna de Jornalismo (18/8, em São Paulo), foi um corolário digno do espetáculo de mau jornalismo que vem sendo infligido à opinião pública desde que se noticiou o encaminhamento ao Congresso do projeto de criação do Conselho Federal de Jornalismo.
Para quem perdeu, vale a pena registrar que os três jornalistas da Globo aproveitaram a premiação para fazer um dramático libelo contra aqueles que, supostamente, ameaçam a liberdade de imprensa. Não faltaram as frases de efeito, caretas e aquela entonação solene com que o Jornal Nacional marca os momentos de gravidade em suas edições.
Alguém que tenha assistido a esse espetáculo e que venha acompanhando o noticiário e a profusão de editoriais e artigos sobre o tema é induzido a crer que estamos à beira de um golpe de Estado. E talvez não esteja tão longe da verdade. A massa de textos e pronunciamentos dando conta de que o atual governo estaria atentando contra a liberdade da imprensa chegou a superar, durante as duas primeiras semanas de agosto, o espaço concedido no mesmo lapso de tempo à cobertura de eventos reais como, por exemplo, a votação da reforma da Previdência.
Firmeza democrática
É fato que o projeto não nasceu no atual governo, mas se originou de uma antiga reivindicação dos jornalistas. Alguns recordam que, sob a coordenação do saudoso Perseu Abramo, já em 1975 se discutia em São Paulo a criação de um conselho que buscasse a convergência de interesses entre os jornalistas e os donos das empresas de mídia. Também nessa ocasião se buscava criar instrumentos de controle contra desmandos e manipulações. A resistência contra a ditadura ainda era um ponto em comum entre a maioria dos jornalistas e de alguns, e bem poucos, donos de jornal.
Portanto, a teoria conspiratória que transforma jornalistas de currículos respeitáveis em maus atores com um péssimo roteiro pode significar apenas mais um mau momento da mídia brasileira. Mas também pode ser muito mais do que isso. Pode ser, sim, que esteja em andamento um golpe contra a democracia, como aquele que sutilmente conduziu ao poder o ex-presidente Fernando Collor, em 1989.
Pelo menos uma agência de comunicação contratada para a campanha eleitoral em São Paulo está compondo um dossiê com uma seleção de manifestações publicadas e divulgadas pela televisão e pelo rádio nos últimos dias. Um pesquisador mais distraído que em futuro próximo vier a consultar esse arquivo poderia ser facilmente induzido a crer que, em agosto de 2004, a imprensa brasileira reagiu com firmeza democrática à tentativa de um governo ditatorial de minar suas bases de independência. Da mesma forma como uma leitura do que os grandes jornais brasileiros publicaram entre janeiro e março de 1964 nos dá a entender que o estancieiro Jango Goulart preparava naquela ocasião a entrega do Brasil à União Soviética.
Escolhas unânimes
Jango teve seu Leonel Brizola, como Lula tem seu José Dirceu. Quem já teve a oportunidade de observar o ministro da Casa Civil em sala de espera de aeroporto, pode ter uma idéia aproximada de como o poder afetou o núcleo do Partido dos Trabalhadores. O que se observa é um sessentão muito cioso de sua aparência, sempre exibindo um terno de corte impecável, sempre acompanhado de um ajudante-de-ordens daqueles antigos. Diferentemente do perfil de executivo que caracteriza os políticos de hoje em dia, José Dirceu gosta de se comportar como chefe. Cochicha ao ouvido de seu assistente, este apanha rapidamente o celular, digita, certifica-se da conexão e o passa ao ministro. Dirceu conversa, sempre em voz baixa, depois devolve o aparelho. Raramente tem alguma coisa nas mãos. Sua pasta viaja com o auxiliar.
Alguma experiência como repórter, editor e colunista de política permite a este observador afirmar, sem medo de erro: José Dirceu adora o poder, exulta com as benesses do poder, tem a si mesmo em altíssima conta e exala arrogância. Uma análise de seus pronunciamentos e de seus movimentos políticos induz à convicção de que ele tem, de fato, uma idéia muito peculiar do que deveria ser a imprensa. E essa idéia não há de ser favorável a uma imprensa como desejamos nós, jornalistas. Mesmo o presidente da República pode ter suas idiossincrasias, escaldado que foi em todas as campanhas eleitorais de que participou como candidato.
Porém, há uma distância cósmica de razão entre o conceito de um ministro e uma circunstância real de ameaça aos direitos civis. A manipulação revela tal grotesquerie que se torna difícil crer que se trata de mera leviandade. Até mesmo as edições – escolhas unânimes e descaradamente homogêneas – dando como sérias algumas brincadeiras do presidente da República com relação ao projeto do CFJ indicam que há muito mais do que mau gosto e incompetência por trás das manipulações.
Reflexão urgente
Quem tiver interesse em conhecer a que ponto a imprensa pode se revelar golpista deve consultar o site sobre o documentário The Revolution Will Not Be Televised, produzido pelos irlandeses Donnacha O´Briain e Kim Bartley na Venezuela, em abril de 2002, durante o golpe de Estado que tirou momentaneamente do poder o polêmico presidente Hugo Chávez. O que ali se revela é que, desde as primeiras greves, todo o movimento que se encerrou semana passada, com o referendo favorável à permanência de Chávez, teve por trás a mão peluda da imprensa.
O documentário, premiado em 23 festivais desde então, dificilmente poderá ser visto por aqui. No Festival da Anistia Internacional, realizado no Canadá, foi retirado da programação na última hora porque a entidade temia pela segurança de seus funcionários em Caracas. O roteiro, ficha técnica, descrições etc., podem ser vistos no site (www.chavezthefilm.com).
No nosso caso, estamos muito distantes disso. Nossa imprensa é livre e continuará desfrutando dessa liberdade. Mas não é independente. É golpista, mas já não enfia as próprias mãos na matéria suja. É sutil e profissional. Ela produz dossiês que ela mesma vai utilizar mais tarde, ou que irão alimentar a campanha do candidato que mais lhe agradar. Nas eleições de 2006, por exemplo, poderemos vir a ler editoriais e artigos comentando como o possível candidato à reeleição atentou contra as liberdades democráticas ao propor a criação de um Conselho destinado a ‘vigiar e punir’ o jornalismo.
Há, de fato, portanto, uma ameaça à sobrevivência da nossa imprensa como instituição a serviço da democracia. Ela nasce na cabeça dos donos da mídia, habituados a conduzir os processos de escolha do nosso sistema representativo, da mesma forma como em tempos muito recentes se produziam índices de inflação com prognósticos de inflação.
A rigor, pouco ou nada irá sobrar do projeto que os sindicatos de jornalistas – dominados ou não pelo PT, isso é periférico – escreveram e encaminharam ao Ministério do Trabalho do governo Fernando Henrique. Tampouco teremos a oportunidade de conduzir a bom termo qualquer debate sobre a conveniência ou não de se criar no Brasil um órgão regulador da imprensa. O tema apodreceu no processo de desinformação que envolveu toda a sociedade e atingiu até mesmo a capacidade de discernimento de muitos jornalistas.
Se somos incapazes de conduzir em termos sensatos uma questão como essa – de regular complexidade, dado o grau de maturidade das instituições nacionais – quem pode esperar que algum dia nossa imprensa possa de fato abrigar a urgente reflexão sobre um projeto de nação para este país?
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Jornalista