Às vésperas da decisão sobre a sede dos Jogos Olímpicos de 2016, a publicação da reportagem de Jon Lee Anderson, na revista New Yorker, pintando um Rio de Janeiro dominado por bandos de traficantes sanguinários, foi inevitavelmente associada a uma campanha contra as pretensões da cidade e ao lobby em favor da candidatura de Chicago para esse evento. É uma acusação mais do que plausível; entretanto, o mais importante não é isso, mesmo porque é sempre muito difícil aferir, com algum grau de precisão, a influência de uma notícia, reportagem ou série de reportagens sobre decisões políticas, especialmente quando não dependem tanto da pressão popular. Porém é muito relevante, para uma crítica do jornalismo, averiguar como um repórter tão laureado e uma revista tão conceituada resolvem atribuir ao Rio de hoje as características da Chicago de quase um século atrás – e aqui a coincidência entre as cidades envolvidas na disputa pela sede dos Jogos é mesmo apenas uma coincidência. Mais ainda, importa discutir qual é, afinal de contas, o papel do jornalista ‘investigativo’, diante de uma realidade que ele desconhece e que pretende mostrar a um público estrangeiro.
Ao atribuir à sua reportagem o título ‘Terra de gangue – quem controla as ruas do Rio?’, Jon Lee Anderson não foi nada menos que irresponsável: generalizou para toda a cidade a situação dramática em que vive uma parcela da população moradora em favelas, a partir do relato de sua experiência limitada a duas comunidades na Ilha do Governador. A ponto de escrever o seguinte: ‘Num modelo que se reproduz por todo o Rio, os moradores da Ilha vivem sob a autoridade de facto de um gângster e seu exército particular’ (destaque meu).
Logo, para o leitor desavisado, é como se a cidade inteira estivesse dominada por facções criminosas a intimidar os moradores em cada esquina.
Igualmente irresponsável, e ainda mais chocante, é a afirmação de que o Rio de Janeiro é líder mundial de homicídios dolosos (‘violent intentional deaths‘, assim mesmo, entre aspas, embora sem remissão a qualquer fonte). Conviria indagar de onde o repórter tirou essa informação, que seria manchete inevitável nos jornais brasileiros e seguramente mereceria destaque em alguns dos principais jornais estrangeiros. Se fosse verdadeira.
O repórter como protagonista
Repórteres famosos correm o risco permanente de se tornarem protagonistas da história que pretendem contar e por isso tendem a supervalorizar a própria experiência vivida, descartando o recurso a fontes de pesquisa sistemática, capazes de lhes oferecer os fundamentos para uma apuração adequada, longe de estereótipos e das armadilhas do imediatamente visível. Porém é mesmo assim, como um incauto explorador entre nativos, que Jon Lee Anderson constrói sua narrativa. Por isso se espanta com o que por aqui – e mesmo lá fora – já foi noticiado inúmeras vezes; mais ainda, por isso elabora teorias que já foram confirmadas – ou contestadas – por trabalhos acadêmicos de excelente qualidade ao longo das últimas décadas.
Assim, por exemplo, ‘descobre’, vinte e cinco anos depois de Alba Zaluar em A máquina e a revolta, que o tráfico se estrutura de acordo com a mesma hierarquia de uma empresa, com seus gerentes e demais funcionários. Por outro lado, valendo-se de fontes duvidosas mas com bom espaço na mídia, apresenta a esdrúxula – mas impressionante… – versão de que o recrutamento e o comportamento dos nossos jovens traficantes se compara aos dos membros da Al Qaeda; que o espaço das ‘guerrilhas marxistas’ dos anos 1960 é hoje ocupado pelo tráfico armado; que as favelas são um lugar onde o Estado não entra – quando obviamente entra sistematicamente através de violentas ações policiais – e que, consequentemente, são dominadas por organizações criminosas, como se os traficantes pudessem controlar esses territórios sem estabelecer acordos convenientes.
Por isso, talvez, não se indague por que a polícia, afinal, não consegue prender o chefe do tráfico na Ilha, o sujeito bárbaro que ‘tem o Diabo nos olhos’ e Jesus tatuado no braço, que ele próprio, simples jornalista, consegue localizar e entrevistar, com foto e tudo. O apelo ao espetacular é inescapável: nosso homem na selva infestada de malfeitores chega até onde a polícia não conseguiu. E sai ileso para contar a história.
Jon Lee Anderson declarou que costuma levar três meses na apuração de suas reportagens. Pesquisadores da área de ciências humanas levam bem mais tempo para elaborar teses e artigos. É claro que um trabalho acadêmico é diferente de uma reportagem, mas seria o caso de perguntar por que as reportagens – inclusive e sobretudo as grandes reportagens – ignoram sistematicamente os trabalhos acadêmicos como fonte de informação.
Perspectiva abrangente
Seria ocioso detalhar os argumentos que expus num artigo apresentado no congresso da Intercom do ano passado (ver aqui). Mas vale a pena reiterar alguns pontos: primeiro, a atitude arrogante de considerar que a própria experiência basta, de modo que o jornalista não apenas descarta como pretende substituir o pesquisador e seus estudos sistemáticos que poderiam orientar a pauta, lançando-se à ‘aventura’ da reportagem para descobrir, por ele próprio, o que o pesquisador já sabe há tanto tempo – o pesquisador, mas não o grande público, porque o grande público não lê trabalhos acadêmicos e os jornais em geral os ignoram. Segundo, e coerentemente, a valorização do testemunho como revelação da ‘verdade’, como se a experiência ‘vivida’ do jornalista valesse mais que qualquer elaboração teórica sobre aquela realidade, ainda que essa elaboração teórica esteja ancorada em exaustivos trabalhos de campo.
A reportagem de Jon Lee Anderson para a New Yorker é, de fato, o relato de sua experiência em duas favelas da Ilha do Governador. Por que tão destacado repórter resolveu estender, ao conjunto da cidade, o tipo de conflito e opressão circunscrito às áreas onde os traficantes atuam e se abrigam, só ele poderia responder. Da mesma forma, só ele poderia responder por que decidiu fazer sua ‘observação participante’ numa região absolutamente singular na geografia da cidade, e não em outras onde se localizam favelas muito mais presentes na mídia brasileira e estrangeira, como as do Alemão – palco de uma violenta intervenção policial às vésperas dos Jogos Pan-Americanos de 2007 –, a da Maré – bem à beira da Linha Vermelha, caminho do aeroporto internacional, onde o repórter relata a ocorrência de tantos tiroteios – ou a da Rocinha, no cenário encantador que atrai levas de gringos em jipes camuflados, próprios para embrenhar-se na selva e estabelecer um prudente e curioso contato com os ‘nativos’.
A reportagem foi editada na seção ‘Reporter at large’. Para fazer jus a esse título, conviria adotar uma perspectiva igualmente abrangente no relato jornalístico. Do contrário, ficamos com mais uma história para americano ver.
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Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)