Na mesma edição (sábado, 29/1) em que noticiava o aumento da circulação de jornais no Brasil (alta de 2%no ano passado, segundo o IVC), O Globo mostrava com tintas fortes, em sua cobertura da revolta civil no mundo árabe, o papel estratégico da internet, dos celulares e das redes sociais.
Segundo o IVC e o jornal, a participação de mercado dos jornais populares não se alterou em relação à fatia dos chamados jornais qualificados, consolidando a tendência dos últimos anos. Para o gerente-geral de Mercado Leitor da Infoglobo, Alexandre Kabarite, ‘isso demonstra que, apesar de algumas dúvidas em relação ao futuro do jornal impresso, o mercado brasileiro ainda é bastante promissor para os leitores, anunciantes e editores’.
Não deixa de ser auspicioso esse tipo de notícia para a classe jornalística como um todo, mas também não deixa de chamar a atenção do observador a evidência de que, em nenhum instante, se tocou no papel da imprensa tradicional na convulsão social do mundo árabe em demanda de mudanças políticas. O que se sabe com certeza é que o presidente Barack Obama proclamou a internet como um ‘ícone da liberdade’, mídia sobre a qual o governo egípcio se empenha em exercer estreito controle.
Esse controle cresceu no momento em que milhares de pessoas passaram a enfrentar blindados nas ruas, o que levou a cortes esporádicos em redes sociais como Facebook e Twitter, e depois no SMS, três das principais ferramentas que ajudaram a alimentar os protestos. Verificou-se então aquilo que os analistas do setor têm chamado de ‘ciberguerra’. Mas não se trata dos cenários de ataques terroristas imaginados por estrategistas militares americanos ou mesmo por roteiristas de cinema, e sim do confronto da sociedade civil com o poder de Estado.
Censura, modos de usar
Como bem se sabe, as fortalezas cibernéticas estão repletas de pontos vulneráveis em meio à complexidade técnica das conexões eletrônicas. A exemplo de uma rede de pesca, os vértices interligados da web deixam pequenos espaços vazios, por onde se infiltra a ‘contracensura’. Cientes das brechas, mais de 16 milhões de internautas egípcios recorreram aos servidores proxy, que garantem o anonimato dos usuários e são muito conhecidos na luta contra a censura na China.
Há algo de notável em toda essa movimentação quando se leva em conta que, até mesmo um velho espaço urbano, como é o caso do Cairo, transmuta-se topologicamente em um novo, na medida em que se deixa atravessar pela lógica reticular (a lógica da rede) no nível das relações sociais.
Em tempos de crise ou de normalidade institucional, essa lógica caracteriza-se pela descentralização (não há uma posição única, e sim uma multiplicidade de conexões), pela interdependência coordenada dos elementos (o que implica tanto a solidariedade entre vizinhos quanto o comum das associações ou de grupos ligados por um mesmo projeto), pela abertura (capacidade de extensão da rede), pela particularização (formação de nichos relacionais no interior de um conjunto ou subconjuntos autônomos e legítimos), pela acessibilidade (a partir de um ponto, pode-se atingir qualquer outro) e pela mobilidade (liberação ou plasticidade dos movimentos). Estas características implicam desterritorialização – e reterritorialização – de espaços tradicionalmente demarcados.
Ao mesmo tempo, é um choque de realidade tomar conhecimento de que é possível ao Estado controlar todos os principais provedores de internet e telefonia celular, derrubando o sistema quando bem quiser. É precisamente o que ocorre no Egito, onde o governo, dando-se conta da insuficiência do controle sobre as redes sociais como o Facebook, simplesmente forçou as operadoras móveis a suspender os serviços.
Sem rede elétrica, sem telecomunicações, sem operadores, a censura acaba sendo exercida de modo semelhante ao que sempre ocorreu nos regimes de exceção, quando exército ou polícia invadia as redações de jornais, rádio e televisão, apreendendo equipamentos e prendendo jornalistas.
Dispositivo tradicional
Apesar do choque, é forçoso constatar que existe mesmo uma nova lógica informativa, subversiva do modelo tradicional, em que o fatos de uma sociedade presumidamente pronta e constituída eram transmitidos a um público-leitor por uma corporação profissional que se industrializou progressivamente ao longo da História – a dos jornalistas. Agora, o complexo informacional conhecido como ‘mídia’ não ocupa mais o lugar de mera correia de transmissão de relatos, porque é um verdadeiro sistema ou um dispositivo capaz de conformar aspectos da própria sociedade.
‘Eu chamo dispositivo tudo aquilo que tem, de uma maneira ou de outra, a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e de assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres vivos’, explica o filósofo italiano Giorgio Aganbem. Dispositivos – telefone portátil, computador, televisão, automóvel etc. – não são, para ele, meros objetos de consumo, e sim funções estratégicas (sempre inscritas em jogos de poder) na disseminação de novas subjetividades.
O jornal confirma-se agora como um dispositivo tradicional, aparentemente mais exultante com a sua própria sobrevida (refletida nos números do IVC) do que com a esfera pública, que animou politicamente no passado. Se o ‘ícone da liberdade’ era o impresso no tempo de Benjamin Constant, passa a ser o virtual na era de Barack Obama.
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Jornalista e escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro