Existe um elo pouco visível, mas bastante real, entre as eventuais discussões sobre a transposição das águas do rio São Francisco e a enxurrada de ações de danos morais contra a imprensa no Brasil. Para percebê-lo, é preciso tomar esses fatos diferentes como sintomas de uma realidade maior, que ultrapassa os limites nacionais: o encolhimento do espaço público e o aumento concomitante do fenômeno de ‘jurisdicização’ da vida social. Este último pode ser resumido como uma espécie de hibridismo que mistura elementos da tradição democrática com o modernismo liberal mal digerido e redunda numa extensão indiscriminada da máquina judiciária à sociedade como um todo. A utilização imoderada dos processos jurídicos e de seus efeitos éticos colaterais é uma das conseqüências imediatas do fenômeno.
O que isso tem a ver com a transposição das águas? Para começar, ponhamos em foco uma frase do deputado Ciro Gomes após uma sessão no Senado, a que compareceram, além do bispo Dom Luiz Casppio, celebridades televisivas: ‘O lamentável desses debates é que entramos com uma opinião e saímos exatamente com as mesmas opiniões’ (O Globo, 15/2/2008). O deputado comentava assim o voto de esperança da atriz Letícia Sabatella no sentido de que tudo aquilo não fosse ‘apenas teatro’.
Duas dimensões da mediação
A frase do político – e presidenciável – é interessante ao olhar do observador por ser sintoma da inexistência de algo que seria necessariamente inerente à saúde dos debates, ou seja, o espaço público. Conversa-se na televisão, entrevistam-se personalidades ad nauseam, realizam-se audiências públicas nas várias instâncias do Legislativo, mas o resultado constante é a inanição dos discursos. Em outras palavras, o excesso de publicidade das expressões individuais não define aquele espaço em que se constitui politicamente a cidadania na sociedade ocidentalizada, isto é, o espaço público.
Inicialmente, a palavra ‘público’, além da designação do ordenamento estatal da vida social, refere-se ao espaço onde a sociedade torna visível tudo aquilo que tem em comum, inclusive a semiose coletiva (etiquetas, praças, monumentos, teatros etc.) resultante da representação que os grupos sociais fazem de si mesmos. Mas como muito bem observa o sociólogo português José Gil, o espaço público é mais do que um puro lugar de comunicação, pois ‘sua característica primeira é a de constituir uma exterioridade, um ‘fora’ para os sujeitos (individuais ou coletivos) que nele penetram’.
Esse espaço se torna visível na comunicação e no diálogo, mas se define essencialmente por sua exterioridade enquanto plano de expressão e de ‘circulação de forças’. A circulação dos discursos informativos, das notícias, refere-se imediata e tecnicamente à comunicação, mas a circulação de forças sociais e os debates transformadores dizem respeito à política. Entretanto, é preciso levar em conta a desvinculação crescente entre o espaço público e a política, categorias ligadas desde as suas origens.
Parece estar chegando ao fim a coincidência entre duas dimensões da mediação tradicional: o espaço público e o espaço político. Quer dizer, por um lado a perda de centralidade da política no espaço público; por outro, o enfraquecimento do poder de transformação das expressões individuais e coletivas que caracterizava isso que denominamos de espaço público.
Debate não muda opinião
Por outro lado, a ampliação tecnológica e mercadológica da esfera pública pela mídia não significa o aumento de sua exterioridade social ou de sua capacidade circulatória das forças de representação na política, isto é, das forças que tradicionalmente constituem a cidadania. Significa, sim, o incremento desmesurado dos signos, das imagens, das informações, que tem mais a ver com um ‘jornalismo de serviço’ (service journalism, nos EUA) do que com o jornalismo cívico em termos políticos.
Na Era da Informação, as pessoas estariam mais voltadas para uma orientação relativa ao consumo ou ao entretenimento do que para a factualidade de natureza político-social tradicionalmente implicada nas notícias e nos debates relativos à condução política da sociedade. Pode-se especular, sugerindo que a informação do fato é própria da cidadania de natureza política (atinente à tradicional democracia representativa), enquanto que a informação de serviço predomina na contemporânea democracia social.
Nesse vazio de um verdadeiro espírito público – em que vigora a cidadania política –, os debates ‘publicizados’ ou veiculados por mídia perdem a ‘exterioridade’ a que se refere José Gil, ou seja, o poder de converter em algo diferente de si mesmas as opiniões individuais. Assim pode ser lido o sentido profundo da citada frase do deputado: o debate não muda a opinião de ninguém, é como se cada debatedor fosse uma mônada surda ao discurso do outro, embora cheio de retórica expressiva. O risco, como suspeita a atriz, é de que a toda a troca de opiniões não passe de teatro. Senão, de puro efeito de mídia.
Espetáculo da corrupção
Mas é também na inanição do fenômeno político e, conseqüentemente, de seu reflexo na imprensa, que a máquina judiciária ‘transpõe-se’, como as águas de um rio, para ocupar os espaços diversos de outras instituições sociais. Este não é um argumento muito novo. Sociólogos e filósofos europeus já se deram conta há algum tempo de que a reivindicação dos direitos da cidadania tem hoje enorme predileção pelas formas processuais, que lhe dão uma aparência de resolução. Este é um dos sintomas, já mencionados, da ‘jurisdicização’ da vida social.
No fundo, fascinada pela potência da lógica judiciária, a comunidade abre mão da gestão política do social (o que só é possível pelo enfraquecimento do vínculo intersubjetivo) em favor de uma esperança de transparência, supostamente garantida pela máquina da justiça. O princípio da representação política dá lugar à delegação processual.
Talvez ainda seja cedo para se avaliar o quanto de liberdade civil se pode perder nesse processo. Mas já se pode suspeitar, com boa dose de fundamento, que tem a ver com tudo isso a vigilância feroz das palavras (não dos corpos, nem mesmo do sexo) dirigidas a outros em público. De dez anos para cá, coincidentemente com a onda do ‘politicamente correto’, entraram na moda as ações de danos morais, inicialmente contra indivíduos, depois contra corporações jornalísticas. Uma crítica política acerba pode ser a mais ‘justa’ num determinado contencioso, mas agora o que ela suscita não é mais a velha resposta em espaço público, e sim uma ação por dano moral. Uma reportagem bem apurada pode ter como ‘resposta’ dezenas e dezenas de ações de danos morais, como agora acontece a uma repórter da Folha de S.Paulo e ao editor do Extra.
A moralização generalizada do social pelo frenesi judiciário atenta contra a plenitude das liberdades civis, logo, contra o que se tem entendido como imprensa livre. Mas, pelo visto, o nosso jornalismo atual ainda não avaliou o perigo; apenas se ressente do incômodo causado pelos processos. Se tivesse mesmo se dado conta da gravidade do fenômeno, não se contentaria com a produção frenética, em nome da transparência legal, do espetáculo da corrupção dos políticos.
Claro que é importante a moralização da gestão pública, claro que importa a transparência pública dos gastos. Mas tão ou mais importante é encontrar formas sociais de revigoramento do espaço público pelo livre debate, aquele capaz de produzir a mudança de opiniões, aquele mesmo responsável pelo peso da imprensa na história das liberdades civis.
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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro