No domingo (31/10) à noite, nos estúdios da Rede TV!, o jornalista Kennedy
Alencar lançou a pergunta: ‘Qual a sua expectativa para o governo Dilma?’.
Aconteceu de eu estar lá, na bancada, à direita do âncora do programa. Assim,
coube-me responder à indagação. Respondi com algo que pode ser lido como
anedota, embora não seja apenas anedota. Arrisquei um palpite sobre a
comunicação do governo Dilma Roussef. Segundo a profecia humorística que me
ocorreu, antevi a inclusão da palavrinha ‘todas’ na marca de fantasia do governo
federal.
Recapitulemos os fatos para entender melhor a anedota (ou não). Com Lula, o
publicitário Duda Mendonça conduziu a idealização da marca de governo. Ela ficou
assim:
Desde então, o selo fez fama (deixemos a fortuna pra lá) e correu cantos e
meios deste propalado ‘país-continente’, em placas nas estradas, anúncios de
jornal, publicidade na TV. A assinatura, ‘Brasil, um país de todos’, foi motivo
de orgulho e de piada, conforme o público e o contexto.
Olhei muito para essa logomarca durante muitos minutos, em ocasiões
distintas. Umas tristes, outras felizes. O ‘A’ embandeirado, ufanista e
informal, posto feito um campanário central na cidade de letras multicoloridas,
serve de âncora. O resto é óbvio: o azul um tanto tucano do ‘B’, o amarelo do
‘R’, o lilás (ou será rosa?) ao fundo, o negro do ‘I’ e o vermelho petista do
‘L’, temos um arco-íris ideológico, multiculturalista, baianíssimo, pop. Uma
República alegre, carnavalesca e, nem por isso, menos oficial. Um pouco festa
junina, um pouco Alfredo Volpi, como que nos dizendo ‘vem que tem lugar para
todas as cores’.
Ou quase todas. O termo ‘todos’, posto assim, apenas no masculino,
pode incomodar alguns – e algumas. O dito ‘masculino inclusivo’ (o quê?), o
masculino que ‘contém’ o feminino, ou, mais ainda, que tem o poder de conter o
feminino, acaba por omitir o feminino. Ele tem a desvantagem de não realçar a
presença das mulheres dentro do ‘país de todos’.
Brasão da República
Pensando nessas tolices, ali por 2003, eu via certa graça na possibilidade de
que o bordão pudesse ser visto como politicamente incorreto pelas feministas
mais, digamos assim, feministas. Eu não acho que ele seja nada machista, mas
desconfiei, desde quando vi o símbolo pela primeira vez, que muitas pessoas – no
feminino e no masculino – que trabalhavam no governo fossem olhar para ele como
se ele fosse uma pérola de machismo involuntário.
Muitas dessas pessoas se esmeravam em dizer ‘todos e todas’ em todas as
solenidades e todos os comícios. Em todas as cerimônias oficiais, várias das
autoridades do governo Lula, ainda que não todas, ao iniciar um pronunciamento,
liam a nominata e depois emendavam: ‘Bom dia a todos e todas’. ‘Boa noite, todos
e todas’. Uns e umas variavam, e punham ‘todas’ na frente de ‘todos’, como quem
diz ‘senhoras e senhores’. Isso foi indo, foi indo, foi indo e chegou a tal
ponto que agora uma mulher do governo Lula se tornou presidente (ou presidenta)
do Brasil. É histórico, sem dúvida, que tenhamos uma mulher como presidenta.
Mais que histórico, é histórica.
Mas e agora? Qual será a marca do governo da Dilma?
Poderia ser esta, só com a palavra ‘Todas’, só para compensar:
Ou esta, só para conciliar:
No fundo, e agora falando um pouco mais sério, mas não muito, ou não muita,
Dilma faria melhor se não adotasse marca alguma. Faria melhor se identificasse o
governo federal apenas pelo Brasão da República, pela bandeira nacional, mais
nada.
Sobre essa história de logomarcas oficiais, há outras considerações que
importam mais e vão além das anedotas.
Burla da lei
Logomarcas elaboradas por agências de publicidade para servir de identidade
visual para governos são truques para burlar a lei. Dito desse modo vai soar
agressivo, e não é esse o propósito. Explico melhor.
A legislação brasileira, a começar da Constituição, procura impedir que a
comunicação de governo descambe em promoção pessoal do governante ou de seu
partido. A razão para esse cuidado é simples, muito fácil de entender: não se
pode usar verba pública – de todos e, com todo o respeito, de todas – para
promover uns ou umas em detrimento de outros e outras. Isso caracterizaria uso
de recursos do erário para fins privados. Por isso, em função desse tipo de
cuidado da lei, nós não vemos nas campanhas publicitárias de governos, campanhas
notoriamente milionárias, a cara do presidente ou do governador. Além de imoral,
isso seria ilegal. Vejamos o que diz, a esse respeito, a Constituição
Federal:
‘A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos
públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela
não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal
de autoridades ou servidores públicos.’ (Artigo 37, XXII, § 1º.).
Fiquemos agora com o exemplo do governo federal. Toda peça de comunicação do
Executivo vem com a assinatura ‘Brasil, um país de todos’, na forma do logotipo
já bastante conhecido. Note bem o leitor: não se trata do brasão da República,
que seria um símbolo impessoal, mas da marca de fantasia de um governo em
particular. Por operações publicitárias elementares, o governo conseguiu
associar de tal maneira esse logotipo à identidade do governante que o logotipo
substitui, com clareza total, o nome e a fotografia do próprio governante. Hoje,
qualquer brasileiro sabe que esse símbolo é a impressão digital do governo Lula.
Se o símbolo aparece, é porque ‘foi Lula quem fez’.
É nesse sentido que as logomarcas de governo burlam, se não a letra da lei,
ao menos o espírito que norteou a redação da lei. A Constituição veda ‘símbolos
ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades’, mas é como se não
vedasse, pois lá está, em todas as campanhas publicitárias do governo federal, o
símbolo que substitui a foto de Lula e o nome de Lula.
Distinção bem-vinda
Há poucos meses, num artigo para o jornal O Estado de S. Paulo (‘A
propaganda eleitoral vai ao paraíso‘, de 3/6/2010), toquei nesse
assunto:
‘A República brasileira naturalizou um conceito que não faz o menor sentido
republicano: o conceito de que o dinheiro público pode ser gasto, aos bilhões,
para convencer a sociedade de que o governo é bonzinho e precisa ser reeleito,
por favor.’
Estico um pouco mais a imodesta citação de mim mesmo:
‘Em nossa cultura política, nós, brasileiros, passamos a ver como natural a
prática de massificar a opinião de alguns (os que estão no comando do Executivo)
com o dinheiro de todos (que não estão no Executivo e que nem sempre concordam
com a opinião dos que lá se encontram) para combater a opinião dos que discordam
(que são igualmente cidadãos, mas cujas opiniões, na prática, são menos
prestigiadas e menos valorizadas do que as opiniões dos que concordam). Recursos
do Estado entram diretamente na disputa ideológica. Cadê a
República?’
A adoção de marcas de governos como se fossem marcas de mercadoria faz parte
da lógica de uma escola de comunicação pública que estendeu para todos os meses
de todos os anos a propaganda eleitoral. As peças de comunicação de governo hoje
são, em todos os níveis (federal, municipal e estadual), o prolongamento de
campanhas partidárias, nitidamente partidárias, fora do período eleitoral. Nesse
sentido, todas as peças de promoção de governo são bem ruins, nada
republicanas.
Nesse campo, se me cabe uma sugestão, o governo Dilma Roussef poderia se
distinguir do governo Lula por um pouco mais de impessoalidade. Impessoalidade.
Nada além de impessoalidade. Impessoalidade (vou repetir a palavra), além de ser
um princípio constitucional, tem a vantagem de já vir no feminino.
***
PS: Para a confecção das logomarcas alternativas deste artigo, registro a
gentil colaboração do arquiteto Ciro Miguel, do escritório SPBR.
******
Jornalista, professor da ECA-USP e diretor do Curso de Pós-Graduação em Jornalismo da ESPM