Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um papo realmente cansativo

Se há alguma coisa que realmente tem cansado é o constante recurso ao discurso democrático. A tal democracia é um discurso que paira sobre nós, e em momentos como o que vivemos, se põe na posição de denúncia de seu vazio.

No plano nacional, a imprensa, a tal ‘zeladora da democracia’, calou durante oito anos de absurdos do governo do Fernando II, o chamado sucintamente de FHC. Nos quatro de Lula, foi sagaz em catar aqui e ali motivos para falar de corrupção. Não posso, aqui, neste momento, citar fartamente dados e fatos, mas basta lembrar a compra da reeleição e as escutas telefônicas que revelaram a armação na privatização de um setor da telefonia – se não me falha a memória –, no tempo do Fernando II, e o tal mensalão e o dossiê anti-Serra, nestes tempos de Lula. Se formos comparar a intensidade e a profundidade da cobertura midiática – falo principalmente dos grandes jornalões – vamos entender que a democracia tem suas nuances de acordo com interesses, que se manifestam economicamente. Se a zeladora age assim, o que esperar?

O xodó dos ordeiros

Se formos tomar a cobertura jornalística, principalmente da Globo, nas eleições do Paraná, estado no qual moro hoje, o assunto esquenta mais ainda, pois a Rede Paranaense de Televisão, a Globo local, abraçou desavergonhadamente a campanha de um dos concorrentes e, em vez de deixar isso claro, como seria de se esperar, não o fez: continuou com o cínico discurso da imparcialidade. O mesmo se pode dizer do jornal ligado a essa rede televisiva, a Gazeta do Povo.

A democracia, na prática, é um discurso e uma estrutura que está tendo por fim proteger interesses dos que são, na matemática financeira, mais bem nutridos. Aqueles que, como lembrou Wright Mills, roubam em grande quantidade, mas de forma suave, de pouco em pouco, sem violência.

Se formos pensar com acuidade, a tal democracia deveria significar igualdade de oportunidades em todos os campos, mas desde muito tempo sabemos que não é assim. Atenas tinha os cidadãos livres e tinha os que nem sequer cidadãos eram, incluindo as mulheres e os estrangeiros, que afinal foram aqueles que mais contribuíram para a revolução subjetiva ocorrida naquela cidade, lembrada e cantada em prosa e verso até hoje. A democracia é também o xodó do ‘partido da ordem’, a classe média, e tudo o que esses partidários da ordem não querem é igualdade de oportunidades, ou melhor, a desejam, mas conforme as regras que não a permitam para a maioria. E a falta de sensibilidade com o sofrimento alheio, sofrimento dos mais prejudicados ‘democraticamente’, é, com certeza, o maior dos problemas da sociedade ocidental de hoje, e produz o recrudescimento da violência urbana.

Recorrência discursiva

O que tem cansado, nos dias de hoje, é principalmente o recurso discursivo a esse tema, a democracia. De que está se falando? De um discurso, que, como dissemos, paira sobre nós como uma referência organizativa? Tudo bem, mas se formos investigar a organização que esse discurso concretiza e justifica, francamente não há como ter ilusões. Fundamenta, na prática, o governo dos mais fortes política e economicamente, não o da maioria. A mídia, a ‘zeladora’ tem, na sua maior parte, fundamentado esse governo, essa prática política. Fecha os olhos a alguns fatos, trata de forma acrítica outros, realça diversos conforme claros interesses que contrariam o princípio da igualdade de oportunidades discursadas pelos democratas. Nunca é demais lembrar um dos chefões da mídia brasileira, Assis Chateaubriand, que dizia aos repórteres que se quisessem ter opinião que comprassem um jornal. Quem tem manda, quem não tem, obedece… e não pode expressar sua opinião. O discurso democrático não deveria atentar para isso, acima de tudo?

Não se trata de propor um sistema político ou outro, não se trata de dizer que a democracia não nos serve. Trata-se, sim, de pensar, de questionar e de refletir sobre esse discurso, tão recorrente, que começa a denunciar seu próprio vazio. O importante é aprender com a experiência e essa tal experiência democrática pode nos ensinar muito, basta querer aprender. E não ficar preso à recorrência discursiva.

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Psicólogo e jornalista, mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ, Rio de Janeiro