No plano das relações comerciais, não há certamente grande motivo de júbilo para o Brasil com a eleição de Barack Obama, considerando-se toda a tradição protecionista dos democratas no Congresso norte-americano e tudo o que foi explicitado pelo candidato eleito durante a sua campanha: barreiras tarifárias para os produtos estrangeiros, dentre os quais, sem dúvida, o etanol brasileiro. Mas num país como os Estados Unidos, considerado o ‘único da história que chegou a uma posição de reivindicar uma hegemonia mundial’ (Eric Hobsbawm) e que, portanto, aspira à condução de uma política global, o efeito simbólico da eleição se exerce sobre o resto do mundo e, particularmente, sobre o Brasil.
Entre nós, o ‘efeito Obama’ tende a atuar fortemente sobre as discussões relativas a relações raciais e quotas, expondo convergências e divergências, inclusive no interior de um mesmo dispositivo de mídia. Assim é que uma mesma edição de jornal (O Globo, de 4/11/2008) já se pode mostrar como tabuleiro de opiniões conflitantes. Em seu artigo na página 7, o jornalista Luiz Garcia – um profissional modelar, que sempre funcionou como uma espécie de ombudsman interno – alfineta com ironia machadiana: ‘Somos orgulhosos de nossa falta de preconceito racial – mesmo que em muitos ambientes e variados níveis, esse orgulho seja um tanto ingênuo. Ou hipócrita mesmo.’
Tapas entre panteras
Vale a pena guardar o texto para bem refletir sobre a advertência aguda do comentarista: ‘Um dia – quando, entre outras coisas não mais precisarmos discutir a necessidade de quotas para jovens negros (ou para mulheres) no ensino superior – chegaremos lá.’ O ponto de chegada, explica, é o estabelecimento de ‘uma verdadeira democracia racial’, quando ‘só então estaremos na véspera de ter um Obama no poder’.
Na mesma página, abaixo de Garcia, o jornalista Ali Kamel sustenta que, no Brasil, ‘os racialistas se movimentam em todas as direções, inquietos, produzindo estatísticas que sabemos enviesadas, apostando na divisão dos brasileiros em brancos e negros, logo nós, uma nação até há pouco orgulhosamente mestiça’. O editorial da edição de quinta-feira (6/11) amplia esta suposição com o comentário de que ‘a mensagem pós-racial [de Obama] fecha o ciclo iniciado com o sonho de Martin Luther King e o ódio de Malcolm X, superando as políticas discriminatórias dos racialistas, que tanto sucesso fazem em Brasília’.
Não é preciso dar grandes tratos à bola para perceber que há opiniões divergentes em O Globo sobre a questão de quotas e democracia racial. Aliás, não é apenas Garcia: Elio Gaspari, outra figura modelar em jornalismo, de vez em quando dá mostras de opinião independente frente ao que poderia ser considerada a linha editorial a esse respeito.
E daí?, pode-se perguntar. É salutar que, num mesmo jornal, figuras de destaque em sua redação sejam capazes de suscitar o contraditório sobre um tema candente, principalmente se for levado em conta que não há muito mais lugares na mídia fluminense para discursos socialmente relevantes. As obsessões da cobertura local giram em torno de tapas entre panteras.
‘Chicote e chamas’
Mas é interessante deixar claro que, de um lado, desenha-se a idéia latente de um ‘Brasil verdadeiro’ (a nação orgulhosa de sua mestiçagem), frente a um outro lado, onde se reivindica uma ‘verdadeira democracia racial’, que não tem nada a ver com o wishful thinking da primeira posição. Aliás, essa idéia de um país ‘verdadeiro’ aparece na mesma edição do jornal (4/11) num artigo de Paul Krugman, colunista do The New York Times. Não procede dele, porém, e sim de Sarah Palin, a vice de John McCain, segundo a qual estaria em cidades pequenas, sulistas e brancas ‘o que eu chamaria de os verdadeiros Estados Unidos’, uma espécie de parte ‘pró-EUA’ da nação.
Sabemos que nenhuma absoluta ‘verdade’ nacional resiste à heterogeneidade étnica e ao pluralismo cultural de um país que se caracterize por sua diversidade forte. No Brasil, essa diversidade foi admitida em discursos políticos (Era Vargas) e acadêmicos (Gilberto Freyre, Jorge Amado etc.) a partir dos anos 1930, mas na prática das relações sociais foi sempre ‘enviesado’ o alegado orgulho da mestiçagem. E a concreta dureza das desigualdades sempre pesou sobre o cidadão que nasce com a desvantagem ‘patrimonial’ da pele escura.
Quem desejar estatísticas não enviesadas sobre o assunto pode consultar o Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil (10,2 MB, em PDF), uma correta mensuração com indicadores econômicos, sociais e demográficos, realizada e lançada neste mês de novembro pelo professor Marcelo Paixão, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
É certo que, em sua campanha, Barack Obama situou-se, discursivamente, no plano do pós-racialismo. Pode ter sido uma estratégia eleitoral, mas quando se lê a sua autobiografia, Barack Obama – a origem dos meus sonhos, vê-se o quanto essa atitude decorre de uma história familiar submetida à prova negativa e positiva do convívio com as diferenças. Primeiro, seu avô materno (branco), que era um anti-racista de coração; em seguida, a mãe ‘branca como o leite’, que casou com um africano ‘negro como piche’; depois, o tempo de infância no Havaí, onde a convivência interétnica era fonte de lições. Mas nada disso deixou o jovem Obama cego à realidade da violência racista. Tanto que a palavra ‘mestiço’, para ele, não evoca nenhuma candura conciliatória, e sim, ‘imagens de um mundo de chicote e chamas’.
Informação está na cara
É igualmente certo que a superação das dicotomias, da separação entre indivíduos rotulados como ‘raças’ (afinal, raça é sempre o Outro…), é uma das mais desejáveis metas da condição humana em todos os tempos. Mas o Obama de hoje, mesmo tendo estudado em universidade paga e cara, é o resultado de uma luta civil empreendida pela comunidade negra norte-americana, na qual o estabelecimento de quota foi uma importante conquista política. Aliás, ao voltar da Segunda Guerra, o avô de Obama ingressou na Universidade de Berkeley por conta da GI (government issue), uma lei federal que beneficiava os veteranos do serviço militar, inclusive no acesso ao ensino superior – uma quota, portanto.
Apenas sonhando, ninguém se torna avatar do pós-racialismo. Isso é a síntese do sonho de Martin Luther King com o ‘quilombismo’ de Malcolm X. Sem um percurso de lutas e de conquistas graduais ou provisórias, mesmo pagando, nenhum negro entraria em Harvard. Discursivamente pós-racial, Obama não precisa, de fato, exaltar a cor da pele, ao modo retrô dos black panthers, para ganhar votos. Mas basta olhar para ele em jornal, televisão ou internet, pois a informação já está na cara. Ou como dizem ainda os antigos na Bahia: preto tu, sim, mais que isso, turututu.
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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro