O mundo capitalista está fora dos eixos. Pela TV, assisti aos acontecimentos em Londres e outras cidades britânicas. Afinal, o que levou a população a se manifestar, expressar suas angústias e dores de forma tão violenta, através do quebra-quebra, saques de lojas e enfrentamento policial? De um lado, temos enormes taxas de desempregos entre os jovens e imigrantes de países pobres, em sua maioria africanos, excluídos das riquezas; de outro, uma sociedade capitalista xenofóbica.
Para acabar com a revolta nas ruas, o governo inglês lançou mão do aparato repressor. Qualificou o movimento popular como corja de bandidos. Contradição: esse mesmo Estado não dialoga e nem responde às demandas – saúde, educação, moradia, emprego e segurança – da população pobre que vive nos guetos. A meu ver, o quebra-quebra é fruto do desprezo da autoridade inglesa ante as reivindicações dos segmentos marginalizados socialmente. É o queixume desesperado de quem é tratado com desdém pelos ocupantes do poder. Ninguém nega que vivemos num mundo globalizado. Portanto, o que acontece na Europa, é também, entre outros aspectos, uma reflexão sobre os rumos do capitalismo neste século.
Sou contrário à violência e defensor do diálogo. Contudo, os últimos acontecimentos em solo britânico nos levam a pensar: tem algo errado. Vale lembrar que no século 18, a França vivia sob o domínio do Antigo Regime. Paris, a capital, contava com uma população com mais de 500 mil habitantes. O cidadão não tinha liberdade religiosa, não havia liberdade de imprensa, inexistia cidadania e democracia. A situação econômica era difícil: corrupção, fome, insatisfação popular e problemas sociais gritantes. O povo, infeliz, foi às ruas. O rei Luís 16 foi destituído do poder. A Revolução Francesa começou com a tomada da Bastilha, a 14 de julho de 1789.
Nacionalismo estrábico
É sintomático, portanto, o que acontece na Inglaterra. A violência revela a desigualdade abissal em que vivem as pessoas e mostra o muro de pedra erguido para separar os nativos dos imigrantes. A isso soma-se uma grave crise econômica, que se alastra pela Europa e EUA, altas taxas de desemprego, ausência total de perspectiva social para os mais pobres e o temor da inflação. Portanto, taxar de vândalo e bandido quem reage à miséria é covardia. Quem pensa assim é medíocre intelectualmente, por não conseguir ver em profundidade o que está ante seus olhos. Tem mais: os acontecimentos de Paris, em 2005, têm muito em comum com os episódios de Londres. Será que são bandidos e vândalos os 100 mil estudantes chilenos que protestam por se sentirem prejudicados?
Pois bem, essa situação nos mostra o apartheid social que se impõe aos imigrantes estrangeiros no Velho Mundo, que prefere fechar os olhos e não solucionar o problema como se deve. As maiores vítimas dessa segregação são os imigrantes, que são responsabilizados pelas dificuldades econômicas e o desemprego. Incorre em erro quem desqualifica a importância dessas vozes. Foi isso o que ocorreu aqui, do outro lado do Atlântico, no Rio de Janeiro, quando os bombeiros tomaram um quartel (4/6) e protestaram, legitimamente, contra os míseros R$ 950 de salário. O governador Sérgio Cabral quis desqualificar o movimento. A seus olhos, eram “vândalos e irresponsáveis”. Contudo, com o apoio da sociedade civil as coisas mudaram e o governador teve sua imagem arranhada com o episódio. Será que se os bombeiros permanecessem aquartelados a situação deles mudaria? O pano de fundo londrino é um nacionalismo estrábico, que reforça a exclusão social e o preconceito contra os mais pobres. Na verdade, quem não entende a grita da insatisfação popular não percebe que as mudanças, ao longo da história, muitas vezes tiveram início à luz do dia, fora das muralhas palacianas.
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[Ricardo Santos é jornalista e professor, São Paulo, SP]