Em 2008 o jornalismo brasileiro completará dois séculos de existência. A maior parte desses 200 anos foi marcada por ações repressoras ao livre pensamento e ao direito de informar a sociedade. Desde que o Correio Braziliense foi lançado em Londres por Hipólito José da Costa, a imprensa tem enfrentado grandes problemas com o poder, ora cedendo às pressões, ora vencendo os obstáculos.
Por meio de mecanismos de censura prévia, prisão, exílio, tortura, atentados ou pressões financeiras, mesmo antes de 1808 – quando a imprensa foi oficialmente instalada no Brasil Colônia, pela família real portuguesa – os jornalistas, escritores e tipógrafos já conheciam a repressão. A censura foi um legado da colonização do Brasil, estando sempre presente, seja econômica, política ou judicialmente. Costella afirma que a história da imprensa brasileira apresentou períodos de liberdade intercalados pelos de censura declarada (In: MELO, 2007: p.41).
Os 21 anos da ditadura militar (1964-1985) foram marcados pela proliferação e auge da imprensa alternativa:
Diz-se de órgãos de imprensa (especialmente jornais e revistas) editados por grupos independentes e que constituem, em relação às fontes tradicionais de informação, uma opção para o público leitor, em termos ideológicos, formais ou temáticos. […] O que essencialmente caracteriza essa proposta de atividade jornalística é um efetivo descomprometimento em sua linha editorial, uma atitude polêmica e renovadora (Cf. RABAÇA & BARBOSA, 2001: p.379-380).
Nesta luta contra o poder despontou Raimundo Rodrigues Pereira, um dos jornalistas mais importantes e ativos desta fase, que trabalhou em dois dos mais importantes veículos alternativos do período – Opinião e Movimento – e procura, até hoje, lutar por esses ideais em seus projetos jornalísticos, que ele prefere chamar de ‘imprensa democrática-popular’.
Acho que o termo [alternativa] é ruim. Eu acho que o melhor termo é imprensa democrática-popular. Eu a defino como uma imprensa de várias correntes políticas progressistas que querem fazer uma crítica aprofundada ao sistema capitalista e tentar criar um sistema social novo, alternativo a esse [entrevista com Raimundo Rodrigues Pereira, concedida a Maria Cristina O. Gonçalves, em 16/17 jul. 2007, para produção da monografia ‘O jornalismo radical de Raimundo Rodrigues Pereira’ (Unifae, 2007)].
Retratar a trajetória de Raimundo – ‘pouca gente conhece `o gigante da imprensa nanica´’, segundo o jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto [entrevista com Lúcio Flávio Pinto, concedida a Maria Cristina O. Gonçalves, por e-mail, em 25 mar. 2007] –, sua visão e atuação na imprensa brasileira é importante para que essa parte da história seja preservada e sirva como exemplo àqueles que defendem a liberdade de imprensa e a democracia, principalmente aos jornalistas que, muitas vezes, preocupam-se apenas com os ganhos financeiros e esquecem da questão social e de sua verdadeira função, como lembra Mino Carta (Cf. KUSHNIR, 2004: p.214). Para ele, três regras básicas norteiam a imprensa: fiscalizar o poder, buscar a verdade dos fatos e fomentar o espírito crítico.
Aproveitando-se da intensa resistência, muitos jornalistas encontraram, nessa imprensa renovadora, independente e polêmica, espaço para criticar a política e atuar mais efetivamente contra o regime.
Coube a esses jornais criarem espaços de contestação, defendendo interesses de grupos e movimentos sociais, que de outra forma não seriam ouvidos, uma vez que ‘a grande imprensa não tem condições financeiras nem quer opor resistência a governos fortes’, como disse o jornalista Hélio Fernandes (Cf. BAHIA, 1990: p.350). Desta forma, esse tipo de imprensa surge como um canal de comunicação das minorias oprimidas dentro da mídia tradicional.
Kucinski reforça que ‘em contraste com a complacência da grande imprensa para com a ditadura militar, os jornais alternativos cobravam com veemência a restauração da democracia e do respeito aos direitos humanos e faziam a crítica do modelo econômico’ (2003: p.13).
No período ditatorial, porém, militares tentavam barrar qualquer tipo de oposição. ‘A ótica burguesa distingue a `boa´ e a `má´ imprensa. A primeira, bem comportada, goza de privilégios; a outra é sempre depreciada e punida porque ameaça os `bons costumes´ e a `ordem´’ (Cf. CAPELATO, 1994: p.28).
Segundo Chaparro (1998: p.62), a lei da censura prévia veio ‘[…] principalmente para oferecer aval jurídico à operação de destruição da `imprensa alternativa´’. Os principais jornais alternativos foram submetidos a uma censura prévia ferrenha e sem regras. Muitos periódicos, principalmente os de cunho político, foram proibidos.
Kushnir acrescenta que a censura ‘[…] explica-se como forma de impor um determinado contorno de cidadão ideal. […] A postura de vigiar e reprimir, nesse parâmetro, teve (e tem) a intenção de manter uma (imaginária) harmonia social’ (2004: p.35).
Mesmo assim, essa pequena imprensa de oposição é o
[…] berço de um jornalismo político que se destaca nas lutas do povo brasileiro por instituições livres e democráticas. […] A tradição e os valores dessa imprensa de opinião iluminam, mais de cento e cinquenta anos depois, episódios contemporâneos da nossa história […] um período que assinala a queda de regimes e de ditadores como Vargas (1930-1945) e os militares (1964-1985) (Cf. BAHIA, 1990: p.61).
Nas décadas de 60 e 70, quando os grandes periódicos cederam ao golpe – que no seu início contou com a adesão dos principais veículos de comunicação –, a imprensa alternativa enfrentou a repressão política e militar. De 1964 a 1980, surgiram e morreram cerca de 150 jornais que tinham como característica a oposição radical ao período e que foram os principais porta-vozes dos segmentos sociais (Cf. KUCINSKI, 2003: p.13).
Trajetória de Raimundo Rodrigues Pereira
Em 8 de setembro de 1940 [Raimundo nasceu no dia 8, porém foi registrado em 19 de setembro de 1940] nascia, em Exu, Pernambuco, aquele que é considerado o maior nome da imprensa alternativa brasileira: Raimundo Rodrigues Pereira. Seu destaque no jornalismo e na militância política teve início em 1960, quando iniciou o curso de Engenharia no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos/SP.
Foi nesse período que Raimundo também descobriu a esquerda e passou a defendê-la. Por conta de atividades extra-escolares, como participação no grupo de teatro e direção do jornal O Suplemento, Raimundo foi expulso do ITA, com o golpe militar.
Todos os suspeitos de subversão, tentativa de sabotagem e doutrinação comunista que faziam parte do ITA foram para Santos (SP), onde foi instaurado um Inquérito Policial Militar (IPM). Durante o período em que ficou preso no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), Raimundo foi torturado. Após oito dias, Raimundo e seu grupo foram interrogados e encaminhados para a prisão militar, na base da Aeronáutica.
A participação no movimento estudantil prosseguiu após Raimundo sair do ITA e da prisão. Em 1965, ele iniciou o curso de Física na Universidade de São Paulo (USP), onde permaneceu até 1967, atuando junto ao Centro Acadêmico de Filosofia. Durante sua passagem pela USP, Raimundo também lançou e editou, em 1967, o tablóide mensal e alternativo Amanhã. O jornal era predominantemente político. Apesar de efêmero – foram publicados apenas sete números –, teve grande importância histórica, pois foi a partir deste jornal que surgiram vários dos mais importantes alternativos.
No começo de 1965, a carreira jornalística de Raimundo teve início efetivamente, quando conseguiu emprego na revista Médico Moderno.
Depois, foi trabalhar na Editora Abril, na revista técnica Máquinas e Metais. Nesse mesmo período Raimundo trabalhou, à noite, no jornal diário O Dia, também em São Paulo. Em 1967, junto com o Amanhã, atuou na Folha da Tarde.
Era editor de texto e preparava as matérias da primeira página. Em 1968, Raimundo fez parte da equipe de criação da revista Veja, onde atuou até meados de 1970. Depois da saída, Raimundo retornaria à revista em 1993, agora como freelancer. Ele produzia grandes matérias.
Assim que deixou Veja pela primeira vez, o jornalista fez uma edição especial para a revista Transporte Moderno a respeito das estradas da Amazônia, trabalho que durou cerca de dois meses. Com base na investigação para essa matéria, foi proposta, por Raimundo, uma edição especial a respeito da Amazônia para a revista Realidade, para a qual ele já havia feito alguns trabalhos como freelancer no início de 1968. Esta edição foi contemplada com o Prêmio Esso.
Entretanto o jornalista destacou-se na profissão, sendo hoje reconhecido como um grande nome da imprensa nacional, principalmente devido à sua intensa atuação nos semanários Opinião (1972-1977) e Movimento (1975-1981), dois dos principais periódicos populares políticos, que nasceram para combater a ditadura militar.
Nos sete primeiros números Opinião não sofreu maiores incômodos da censura. Entretanto, ao noticiar a morte do estudante Alexandre Vanucchi Leme, 23 anos, torturado no Doi-Codi, e a missa de sétimo dia, na Catedral da Sé, em São Paulo, os censores tomaram providências. ‘[…] os homens da tesoura começaram a agir de maneira excessivamente rigorosa. É a prova de que num Estado policial, ou melhor, num Estado fascista, jamais é permitido expor certas verdades’ (Cf. JORGE, 1987: p.95).
Raimundo conta que driblar a censura era uma busca constante da redação. Os jornalistas sabiam o que seria vetado, como, por exemplo, referências à própria censura, às torturas, aos assassinatos. Mas no começo ainda era possível escrever nas entrelinhas. ‘Até o número 23 – que foi o momento de inflexão da censura – dava para você tocar no assunto muito indiretamente, sem citar nome. Era uma coisa completamente cifrada. A partir dessa edição nem assim conseguíamos’ [entrevista com Raimundo Rodrigues Pereira, concedida a Maria Cristina O. Gonçalves, em 16/17 jul. 2007].
A batalha contra a censura durou quase cinco anos. ‘A luta homérica do jornal Opinião, travada contra a estupidez de uma censura ferozmente estrábica, durou de 1973 a 1977, até a edição do número 231′ (Cf. JORGE, 1987: p.100).
O semanário já não conseguia conviver com a censura feita por Brasília, resultando na apreensão de diversos números, perseguições, além de processos, bombas e prisões.
Mas o processo de fechamento do alternativo foi agilizado devido às divergências de opiniões entre o proprietário d´Opinião, Fernando Gasparian, e seu editor, Raimundo Pereira.
Com isso ele foi demitido e a equipe com a qual trabalhava também se demitiu, em solidariedade ao editor e aos ideais por ele defendidos.
Ribeiro reforça o ideal de Raimundo Pereira. ‘Inviabilizado o Opinião, Raimundo partiu para o que considera o primeiro jornal sem patrão no Brasil, o semanário Movimento‘ (1998: p.145), uma vez que as decisões do jornal eram tomadas por meio dos conselhos.
Após desentendimentos editoriais e políticos em Opinião, Raimundo lança em julho de 1975, em São Paulo, o também alternativo Movimento. Para Raimundo, criar um novo jornal era a única solução: ‘Se quer defender opiniões diferentes, você tem de fazer o seu jornal’ [idem].
Segundo seu fundador e editor, Movimento foi mais visado pelo regime militar do que os demais periódicos, uma vez que a primeira edição já saiu censurada, apesar dos cortes a O Estado de S.Paulo terem sido suspensos no mesmo ano do surgimento do alternativo. ‘O Movimento só teve liberdade quando caiu a censura para o país inteiro, em 1978′ [idem].
O programa político de Movimento consistia em apresentar, analisar e comentar os principais acontecimentos políticos, econômicos e culturais da semana. Para isso, lançou mão das charges, com a publicação da seção ‘Corta Essa’.
Após a queda da censura prévia, Movimento permanecia na mira dos atentados terroristas contra as bancas que vendessem o periódico. Os grupos terroristas tinham como objetivo gerar grandes danos financeiros aos editores, distribuidores e às bancas de jornais e revistas.
No final de 1977 foi criado o jornal Em Tempo, também em São Paulo, com o objetivo de abrigar jornalistas e colaboradores que já não concordavam com a linha seguida por Movimento. O articulador desse novo projeto foi o jornalista Bernardo Kucinski. ‘O grande `racha´ de Movimento, de abril de 1977, […] foi também um marco da reorganização das esquerdas brasileiras’ (Cf. KUCINSKI, 2003: p.17). O autor acrescenta que o conselho editorial de Movimento foi perdendo importância dentro do alternativo, enquanto crescia o poder dos ativistas políticos.
Além dos desentendimentos internos, as principais razões para o fim de Movimento, em 23 de novembro de 1981, foram os atentados às bancas que vendiam o alternativo, assim como outros periódicos que ainda incomodavam os militares. Com os ataques, o jornal perdeu assinantes e as vendas avulsas caíram pela metade.
Assim que Movimento foi fechado, Raimundo retornou para a Editora Abril, onde trabalhou por cerca de um ano na revista Ciência Ilustrada. Ao sair da publicação, em 1983, fez, com a ajuda da Editora Três, o jornal alternativo Política. Mas a experiência durou apenas um número, devido a problemas financeiros. Para arrecadar recursos teve início o terceiro grande projeto alternativo do jornalista: Retrato do Brasil, coleção que estuda o período da ditadura militar.
O dinheiro arrecadado com a venda dos fascículos e de cotas possibilitou a criação do jornal diário Retrato do Brasil, em São Paulo. Entretanto, o periódico durou apenas dois meses. Antes da criação do diário, Raimundo e outros profissionais procuraram Mino Carta e produziram algumas matérias especiais, em parceria com a Editora Três e Domingo Alzugaray, para a revista Senhor, que depois passou a chamar-se Isto É/Senhor, mas por um curto período.
Em 1997 Raimundo fundou a Editora Manifesto. A sede e os departamentos administrativo e financeiro funcionam em Belo Horizonte, e a redação, em São Paulo. Há correspondentes em Brasília e Porto Alegre. Além de levar o título Retrato do Brasil para a nova empresa, a equipe criou o site Oficina de Informações, voltado para a cobertura de fatos do dia-a-dia. Logo em seguida foi criada a revista mensal Reportagem. Publicada até meados de 2005, era voltada para a reflexão e análise. O grupo também transformou Retrato do Brasil em revista, porém sem periodicidade definida e com baixa tiragem.
Vinte anos depois a Manifesto relançou a coleção Retrato do Brasil, que também faz um apanhado dos principais acontecimentos entre o fim da ditadura e o encerramento do primeiro mandato do presidente Lula. Com 43 fascículos e mais de 800 páginas, traz reportagens e análises históricas de temas como política, educação e música, do regime militar à República. A proposta é criar um jornal democrático-popular com a verba arrecadada deste projeto. Raimundo acredita que o país necessita de um veículo com posição independente, sustentado por um público mais interessado e crítico.
Com o fim do jornal Retrato do Brasil, em 1987, Raimundo voltou para a grande imprensa, onde trabalhou como editor e repórter especial da revista semanal Isto É. Raimundo buscou parceria com a Caros Amigos, mas a sociedade não deu certo, então criou a revista Reportagem.
Atualmente pela Carta Capital, em parceria com a Editora Manifesto, Raimundo coordena outro importante projeto: a série Retrato do Brasil e Carta Capital.
São publicados, na revista de Mino Carta, suplementos que fazem uma reflexão profunda a respeito de problemas e desafios enfrentados pelo país. Ao todo serão 12 grandes reportagens, abordando temas diversos, todas produzidas pela redação da Manifesto.
Raimundo acredita que a imprensa é um dos meios de se educar a população, pois se esta não tiver um elevado nível de compreensão política, não atingirá uma democracia mais elevada. A solução, de acordo com Raimundo, é construir uma nova imprensa popular. ‘Na minha convicção é necessária a imprensa popular. Devemos persistir nesse rumo, trabalhar nessa direção e esperar para sobreviver e achar dias melhores para florescer’ [entrevista com Raimundo Rodrigues Pereira, concedida a Maria Cristina O. Gonçalves, em 19 set. 2007].
Raimundo Pereira responde
Com 67 anos de idade, 42 deles dedicados ao jornalismo, Raimundo Rodrigues Pereira pretende completar bodas de ouro na profissão, resgatando esse tipo de imprensa no século 21. Trata-se de um projeto ousado e que pressupõe a necessidade de grandes mudanças, principalmente políticas.
Nesta entrevista [edição das entrevistas com Raimundo Rodrigues Pereira, concedidas a Maria Cristina O. Gonçalves em 10 de janeiro, 16 e 17 de julho e 19 de setembro de 2007 para produção da monografia `O jornalismo radical de Raimundo Rodrigues Pereira´], Raimundo fala de sua atuação nas imprensas alternativa e empresarial. Também rememora fatos relacionados ao período da ditadura militar e discute o jornalismo nos dias de hoje, levando em consideração conceitos como censura, liberdade de expressão, ética, qualidade do jornalismo e democracia.
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Seus ideais socialistas continuam os mesmos ou mudaram desde os tempos do ITA?
Raimundo Rodrigues Pereira – Aprendi a ter mais clareza das coisas. Digamos que eu tinha uma aspiração socialista, mas hoje vejo com muito mais clareza o que significa isso, apesar de estarmos vivendo um período em que parece que o ideal socialista acabou. Eu, por sorte, mesmo em função da minha profissão, pelo fato de ter estudado um pouco e ter aprendido com as coisas que pesquisei e escrevi, tenho mais convicção de que é preciso perseguir esse objetivo.
Talvez com certa clareza, paciência e visão de que o processo da construção socialista é mais complicado do que imaginava quando jovem.
Hoje tenho uma visão mais tranqüila sobre isso. Assim como o capitalismo levou algumas centenas de anos para se consolidar na Inglaterra, a partir do final do século 18, o socialismo, se for vitorioso, terá vivido um processo desse tipo, porém mais complicado.
Como o senhor avalia o período da ditadura militar?
R.R.P. – A ditadura militar foi um dos maiores golpes que o Brasil sofreu. Eles [os militares] fizeram mudanças profundas, de um modo geral, para pior. Eu diria que os militares me fizeram um favor: me tiraram de uma profissão que não era muito bem uma inspiração que eu tinha. Isso foi uma coisa positiva.
Mas, como balanço positivo, vejo pouca coisa além disso. Foi um movimento de extremo rigor e negativo; atrasou inúmeras coisas no país. O Brasil vive, ainda hoje, problemas decorrentes desse período. Em função dos movimentos sociais e das lutas políticas não terem se desenvolvido como a gente imaginava, voltou entre a militância progressista a idéia de que o período não foi tão ruim assim. Mas a ditadura militar foi muito ruim e, como resquício, temos os militares, que ainda se julgam uma casta acima do processo democrático.
Levando-se em conta o jornalismo, que balanço o senhor faz?
R.R.P. – A imprensa brasileira tem uma trajetória complicada. Seguiu o rumo da monopolização, mas com algumas particularidades. Nós tivemos no governo Vargas o Última Hora, num período de resistência e de florescimento do movimento cultural. Já por volta dos anos 1950, 60 o regime militar ajudou a consolidar o sistema de monopólio extremamente conservador, com a Globo à frente, o Estadão, a própria Folha – embora esta hoje se apresente como campeã da luta democrática. Não foi nada disso.
Opinião
foi um semanário expressivo, mas também violentamente reprimido e teve sua trajetória boicotada. Movimento teve uma trajetória em um quadro de recuo do regime, mas também não foi muito longe. O regime militar foi bastante danoso para a imprensa brasileira. E recuou de uma maneira hábil, apagando os seus vestígios. Muita gente [simpatizante do regime] se transformou em democrata.Como a grande e a pequena imprensa noticiaram esse período de repressão?
R.R.P. – O Movimento, por exemplo, foi um jornal de campanhas por muitos temas importantes que não eram censurados, como a organização dos grandes monopólios. Mesmo a questão da concentração da terra, da marginalização dos camponeses, tudo isso o Movimento pôde fazer. Mas não pôde fazer a denúncia dos crimes políticos da ditadura, porque era censurado. A imprensa do grande capital sofreu divisões. O Estadão teve um comportamento diferente.
A partir de um momento, depois de apoiar o golpe, mudou. Como é um jornal muito conservador, as questões econômicas e sociais não mereciam muita preocupação. Mas o noticiário político foi um pouco mais aberto; o jornal noticiou um pouco melhor o regime militar.
Veja
ajudou no processo de saída meio camuflada do regime militar. Para isso negociou, com a ditadura, a saída do Mino Carta da revista. Em 1981, a ditadura acabou com o grande jornal de resistência, Movimento, e entre os partidos de esquerda não se conseguiu construir uma imprensa alternativa com mais expressão. Esse também é um problema que persiste, porque hoje a imprensa popular está muito dispersa.É possível a existência dessa imprensa alternativa nos dias de hoje?
R.R.P. – Acho que isso está associado a um processo político. Nós vivemos um processo político frustrante. Eu sempre disse, até para os meus amigos do governo: Não tem como enfrentar a situação política do país sem construir uma alternativa de imprensa, porque a disputa pela opinião pública é extremamente importante e você tem de entender o que é essa disputa e se empenhar decididamente para fazer isso.
É preciso recriar um movimento político que talvez dure mais dez, vinte anos para construir – em condições normais – uma alternativa importante, que tem de ser, em primeiro lugar, política. Isso porque não se muda um país pela imprensa, mas sim pela política, e a imprensa vai junto, ajudando a fazer a mudança. Só existirá uma imprensa mais democrática em um país mais democrático. Se o país continuar tão pouco democrático como é, a imprensa refletirá essa situação. E se o povo não tiver um elevado nível de compreensão política, não haverá uma democracia mais avançada.
Minha obrigação é estimular um projeto desse tipo. Acho que é uma coisa necessária, porque você pega a Folha, o Estadão, o Globo e vê que eles têm uma visão única: o Estado não presta.
Como estão as relações entre imprensa e poder no Brasil de hoje?
R.R.P. – Algumas pessoas apontam uma contradição que a meu ver não está bem apresentada: o [presidente] Lula está lá e a imprensa está contra ele. Não penso assim. Acho que o governo Lula é um governo democrático, que fez algumas aberturas para o movimento popular. No caso da imprensa popular, inclusive, não nos perseguiu e até ‘pingam’ alguns pequenos anúncios de vez em quando. Mas o compromisso do governo foi, principalmente, com a grande imprensa. A verba da publicidade está principalmente no jornal O Globo e nos grandes órgãos de comunicação. O governo não alterou os mecanismos econômicos básicos. O próprio Lula diz que ‘os grandes nunca tiveram tanto lucro como agora’. Isso o governo Lula não mudou. Também não mudou a quantidade de verba de publicidade que se distribui. Essa imprensa é um monolito e Lula está um pouco à parte desse processo.
A onda contra ele esmaeceu porque não tem nenhuma eleição em curso. Isso de dizer que a imprensa está contra o presidente porque é contra o modelo que ele está implantando no país, é bobagem. Lula não está implantando nenhum modelo diferente para o desenvolvimento da sociedade brasileira. É um país de monopólios, de uma oposição subordinada a um sistema econômico internacional.
O Brasil está mais democrático porque Lula, devido às suas ligações com o movimento popular, tem essa característica, que é boa e ninguém pode negar. O regime de liberdades amplas que estamos vivendo é uma coisa boa e os movimentos de massa não sofrem alguns cerceamentos. O Fernando Henrique [Cardoso], por exemplo, perseguia o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]. Lula não persegue o MST; pelo contrário, aumentou as cestas básicas. Lula não persegue a imprensa alternativa; pelo contrário, deu uns trocadinhos para nós. Mas outra coisa é o sistema político que vigora no país e o tipo de imprensa que o apóia e com a qual ele está vinculado. No essencial, Lula não mexeu.
O senhor acha que a população é alienada em relação às questões políticas do Brasil?
R.R.P. – A população brasileira é esmagadoramente pobre ou miserável. Se você for contar os miseráveis, o Brasil tem umas 30, 40 milhões de pessoas que mal conseguem se alimentar direito. Depois tem um bando de pobres, gente que ganha abaixo de R$ 700 por mês e vive contando o dinheirinho para o ônibus. Pessoas que nunca ouviram falar em tomar um táxi, nunca viajaram de avião. Então assinar um jornal, comprar uma revista, um livro, não dá; só compram o livro da escola do filho, porque é sagrado.
De modo geral, se você nasce em uma casa com certo nível de renda, onde tem livros nas prateleiras e os pais lêem, os filhos vão ler também. Mas a grande massa não vai. O nível de informação, de cultura das massas, é muito precário, em função não só da renda, mas das condições de vida. O sujeito não tem tempo de ler. Você encontra no transporte coletivo sujeitos que perdem três, quatro horas por dia andando para sobreviver. Então, no fim de semana eles querem tomar umas e outras, pôr o chinelão, como diz o Lula, e ficar em casa.
O conhecimento, a formação e a militância política estão mais localizados na elite, pois são camadas mais esclarecidas, com mais condições. É ela que se enfronha e vai fazer esse trabalho de tentar juntar o movimento de massa, porque as pessoas, mesmo não tendo cultura, têm necessidades e são obrigadas a lutar por seus direitos. A elite faz essa ponte entre o movimento consciente e o movimento de massa inconsciente, porém importante na definição.
A imprensa precisa estar sintonizada com as necessidades e aspirações do povo sofrido, porque onde há opressão, como existe no Brasil, sempre tem de haver resistência e luta. Pode passar uns tempos sem, mas tem de haver [luta], porque esse movimento pode ser determinante na mudança.
E qual é o futuro do jornalismo brasileiro, em sua opinião?
R.R.P. – A imprensa não se ergue do chão puxando os próprios cabelos. Você precisa estar atento a movimentos maiores. Hoje, vivemos certa pasmaceira. Existe a imprensa do tipo da Carta Capital e Caros Amigos, tem os esforços que estamos fazendo agora com Retrato do Brasil, tem o jornal do MST, Brasil de Fato, e outras iniciativas na internet, mas são coisas pequenas. Nada que tenha conseguido empolgar nacionalmente e unificar.
Como vai ser daqui para frente? A minha convicção é que você está no campo, trabalhando, e tem de estar atento a como a massa se comporta.
O que levou muita gente a se juntar naquele período [da ditadura] foi um movimento muito forte de intelectuais, jornalistas, como eu e outros. Hoje não tem essa pressão para juntar as pessoas. Naquela época a juventude foi para barricadas, fábricas, guerrilha, pegou em armas. Essa pressão não existe mais.
Para o senhor, em que quadro está a preocupação dos jornalistas com as questões éticas, hoje?
R.R.P. – Tem uma quantidade muito grande de gente que fala em ética para fugir dos problemas. O jornalismo tem dois pontos, como todo conhecimento, pois o trabalho jornalístico é uma tentativa de contribuir para a criação de um tipo de conhecimento. Então tem o aspecto objetivo e o subjetivo. Ninguém pode deixar de partir dos fatos para fazer jornalismo, porque a base dele é o dia-a-dia, principalmente depois que a burguesia o transformou em um grande negócio.
O outro aspecto, o subjetivo, significa que os fatos são vistos a partir de uma posição, onde as questões éticas se colocam. Você pode falar da ética de um sujeito sozinho? Claro que têm aspectos que são de responsabilidade individual. Mas eu entendo que o jornalismo é feito a partir da posição de algum coletivo, onde você tem alguns compromissos.
Para mim a política, que é a ciência número um, representa interesses e isso não é algo ruim. Toda política, assim como o jornalismo, representa interesses. Agora depende dos interesses que você representa e a que grupos está associado. O ideal é que a luta fosse em termos de debates de idéias, que a ética se envolvesse dessa forma, mas não é assim. A luta é um debate de idéias, brigas, confrontos, guerras; é assim que as coisas acontecem. Não existe uma ética em abstrato.
Sou um dos que acham que é preciso se organizar em partidos, em grupos e pôr os interesses desse grupo acima dos interesses dos grupos aos quais você se opõe. Eu procuro me comportar assim. Digamos que temos um grupo com patrimônio coletivo. Você não pode tomar do patrimônio coletivo uma folha, um lápis. Isso não seria ético. Eu não fui para a luta armada, mas acho perfeitamente legítimo que a pessoa que foi tenha tomado armas, assaltado bancos e eventualmente matado alguém. Eu acho isso ético do ponto de vista da luta por interesses amplos.
Não se pode discutir as coisas pela metade, discutir a questão ética sem a questão da luta, da necessidade de se organizar em coletivos, de defender interesses amplos, de perceber que a sociedade está organizada de um modo extremamente desigual e que esses debates se apresentam de uma maneira muito disfarçada.
A ética, hoje, é uma palavra gasta nas mãos de fariseus. Você tem de ter compromisso com as camadas oprimidas da sociedade e, mesmo em relação aos adversários, ter postura, clareza, ser sincero, falar as coisas direito.
Houve efetiva liberdade de expressão em algum momento da história da imprensa brasileira?
R.R.P. – Posso dizer que estamos vivendo um momento de grande liberdade política. O regime burguês que se fundou em nome da liberdade e da igualdade, realizou e realiza em alguns cantos o ideal da liberdade, não o da igualdade. No Brasil os maiores defensores da liberdade sem nenhum qualificativo são os representantes de uma postura internacional, que têm dinheiro lá fora. O centro de interesse são as publicações que alimentam esse tipo de imprensa do grande capital, que está vendendo uma imagem do país incapaz de resistir a uma investigação mínima.
Esse tipo de liberdade de imprensa que se defende – vejo juízes achando que o que esse menino da Veja faz, o Diogo Mainardi, é bom jornalismo, que aquilo é liberdade de imprensa, no seu sentido amplo – é uma besteira.
Aquilo ali não é nem jornalismo, é um conjunto de juízos pessoais que freqüentemente ofendem a honra das pessoas sem nenhuma punição. Eu não acho que ter isso é ter liberdade de imprensa.
Então, para o senhor, o que é liberdade de imprensa?
R.R.P. – É preciso associar liberdade de imprensa ao conceito de democracia. As pessoas pensam que democracia é ter eleição de quatro em quatro anos.
Se você vai conversar com o povo – e eu tenho uma experiência grande nisso; já fiz, talvez, centenas de palestras para operários e organizações de estudantes –, tem de ver no povo as suas condições de vida, as idéias que tem em função das condições que possui. Como é que você pode pretender que o povo tenha grande conhecimento sobre as coisas, se nunca pôde estudar e ler?
O processo democrático com o qual eu sonho é o de uma democracia mais avançada, que ao melhorar as condições de vida dos trabalhadores, permita que as pessoas realmente passem a se situar e a se relacionar em um nível mais elevado, para haver uma democratização efetiva maior.
Como o senhor avalia o fato de ser considerado o grande nome da imprensa alternativa brasileira?
R.R.P. – Eu tive muita sorte em inúmeros aspectos da minha vida. A primeira grande sorte foi ter sido expulso do ITA com o golpe militar. Talvez a única coisa boa que eles [os militares] fizeram no país foi me expulsar da escola.
Fui anistiado, mas nunca pedi nenhuma indenização. Não mereço nenhum tostão. Eu é que deveria pagar pelo favor que me fizeram. Também tive sorte porque trabalhei com gente muito boa, gente de qualidade e que me apoiou (se fosse citar um por um, poderia cometer certas injustiças). Do ponto de vista pessoal, também tive uma sorte imensa ao formar uma família do jeito que é a minha, uma família ótima, que me apoiou muito.
Minha mulher é uma pessoa lutadora. Aprendi demais com ela. Também tive sorte por minhas filhas não terem nenhum problema grave. Elas cresceram em um mundo onde havia muita gente boa em torno de mim.
Além disso, me julgo com sorte porque sempre fui muito animado, e por essa razão me coloquei em posições de direção. Sou representante de um movimento e me julgo uma pessoa privilegiada porque esse movimento me apoiou em vários campos – pessoal, político, jornalístico.
O destaque que tenho não é só meu, é o destaque de um movimento e eu me apresento nos lugares desse modo. Me considero representante desse tipo de imprensa. Mas também não aceito que me excluam do campo dos jornalistas de um modo geral, porque tenho um passado e, se precisar, volto a trabalhar para as grandes empresas. Também me considero um jornalista da grande imprensa, onde fiz carreira e ajudei muito. Dei a minha mais-valia para eles.
Deixe um recado para os futuros jornalistas.
R.R.P. – O jornalismo tem as limitações de todas as profissões, mas é uma profissão que tem a vantagem de buscar sempre o novo. A imprensa popular deve ser valorizada e desenvolvida. Por ser muito pequena, não pode empregar muita gente, mas os jornalistas podem ser empregados em várias outras áreas. Acho que há condições, mas é preciso trabalhar para criá-las, porque não são dadas. O sistema não é totalmente favorável.
O jornalista tem de batalhar e ter muita coragem para fazer um trabalho bom e sensato, sem precisar sair correndo na frente do trem. Mesmo sob o regime patronal, onde tem um patrão que escolhe a linha editorial da publicação, que define o editor, é você, como jornalista, o sujeito que vai para a rua fazer a matéria, articular os fatos. Então você tem uma margem de atuação onde deve se situar, buscando um trabalho que o dignifique, do qual tenha orgulho, que possa reler com satisfação e se aprimorar como redator, repórter, fotógrafo ou editor de qualquer dos ramos.
Para mim foi um pouco assim, e meio que por acaso. Mas criei espaços, trabalhei na imprensa popular, no patronato, e acho isso possível. A despeito da política e da extrema dificuldade, tem campo para a luta.
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Respectivamente, graduanda em jornalismo pelo Centro Universitário das Faculdades Associadas de Ensino (Unifae), de São João da Boa Vista/SP; jornalista, doutoranda em Comunicação pela ECA/USP e professora do Unifae