Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Uma carta para a história do jornalismo brasileiro

A carta de Rodrigo Vianna (ver ‘Ex-repórter da Globo critica jornalismo da TV‘) não foi apenas digna e corajosa. Mais que isso, trata-se de um documento que entrará para a história do jornalismo brasileiro. Justamente por ser a confirmação de que houve, sim, graves distorções operadas pela TV Globo em sua cobertura das eleições presidenciais de 2006.


Dezesseis anos depois da famosa edição do debate entre Lula e Collor, a Rede Globo de Televisão – juntamente com outros veículos – voltou a interferir num processo eleitoral para a presidência da República. Mudou apenas o expediente: se daquela vez o recurso foi a edição tendenciosa de um debate, agora o esforço se concentrou na seleção de notícias de maneira a prejudicar um dos candidatos – como explica Rodrigo em sua carta de despedida:




‘Intervenção minuciosa em nossos textos, trocas de palavras a mando de chefes, entrevistas de candidatos (gravadas na rua) escolhidas a dedo, à distância, por um personagem quase mítico que paira sobre a Redação: ‘o fulano (e vocês sabem de quem estou falando) quer esse trecho; o fulano quer que mude essa palavra no texto’.’


A Globo sabe que seu poder político depende do controle exercido sobre os repórteres, ou pelo menos do controle sobre o que vai ao ar. Se fosse mesmo uma emissora plural, onde houvesse espaço para a veiculação de diversos pontos de vista e com diretores de ideologias variadas, sua capacidade de pressão e chantagem seria infinitamente menor.


Por isso não chega a surpreender o trecho em que Rodrigo diz:




‘Nunca, nem na ditadura (dizem-me os companheiros mais antigos), tivemos na Globo um jornalismo tão centralizado, a tal ponto que os repórteres trabalham mais como bonecos de ventríloquos, especialmente na cobertura política! (…) Passadas as eleições, quem discordou da linha editorial da casa foi posto na geladeira.’


Mercado fechado


Num momento em que a Globo se vê afundada em dívidas (recentemente a Folha de S.Paulo falou em 6 bilhões de reais) e se vê ameaçada pela entrada das teles no mercado de produção de conteúdo audiovisual, faz sentido que as vozes discordantes sejam cada vez mais perseguidas. Por outro lado, na época da ditadura orientada pela CIA – regime apoiado pela Globo no qual vigorou a tortura institucionalizada – a emissora reinava absoluta e podia até se dar ao luxo de empregar comunistas.


E, justamente quando o repórter Rodrigo Vianna é informado de que sairia da geladeira para o desemprego, dezenas de leitores o criticam por ter ‘calado durante 12 anos e só ter falado o que sabe ao ser demitido’. Será que os leitores não percebem que este é o argumento da própria empresa? Vejam o que disse o diretor da TV Globo em São Paulo, Luís Cláudio Latgé, na carta-resposta (ver ‘Diretor da Globo comenta saída de repórter‘):




‘Se a integridade dele é tão elevada, como ele supõe, por que não se demitiu anteriormente, convivendo durante meses com uma situação que ele classifica de insuportável? Não o fez porque tinha como certo que seu contrato seria renovado.’


Que o diretor dissesse isso, era esperado. Mas o que os leitores esperavam? Um super-herói? Rodrigo é um ser humano como qualquer outro, com seus defeitos e qualidades. Prefeririam que ele tivesse saído como um cordeirinho, de cabeça baixa e resignado?


Pode até ser – e é bem provável – que já tenha passado por momentos politicamente conturbados dentro da empresa, mas o fato é que ele achou que este seria o momento adequado para divulgar a carta. E uma carta que, aliada às reportagens das edições 415 e 416 da revista CartaCapital, contém elementos mais do que suficientes para que as autoridades competentes tomem alguma atitude.


Outra coisa. Para tomar uma decisão como a de Rodrigo, é preciso mais do que um sentimento de vingança, como a empresa quis fazer parecer. É preciso ter coragem, determinação e força. Porque ao divulgar uma carta como essa, que comprova o envolvimento da maior empresa de comunicação do país na campanha de um dos candidatos nas últimas eleições presidenciais, o jornalista sabe que o tal mercado de trabalho estará, a partir de então, consideravelmente mais fechado para ele.


Assédio moral


Se Rodrigo Vianna tivesse calado, ficaríamos sem a comprovação de alguém que viveu o processo. E mais: a opinião pública não teria a confirmação de que há perseguição política a jornalistas da TV Globo. Talvez agora entendamos o porquê de tanta autocensura entre os repórteres, inclusive de outras empresas – já que não é razoável supor que a Globo detenha a exclusividade dessa prática.


Além disso, existe uma forte carga de arrogância no argumento da Globo – como, aliás, têm se caracterizado os documentos por ela divulgados sempre que acusada. Coisa do tipo: ‘Enquanto o funcionário obedecer direitinho, seu contrato será renovado. Senão…’. Aliás, seria bom que o Ministério do Trabalho investigasse essa modalidade de contrato temporário, que submete o trabalhador ao constrangimento da instabilidade e favorece o surgimento de um cenário que se encaixa perfeitamente na descrição de assédio moral proposta por uma das maiores estudiosas do assunto, a psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen. Para ela, assédio moral significa…




‘…toda e qualquer conduta abusiva que se manifeste sobretudo por comportamentos, palavras, atos, gestos e escritos que possa trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho’ (Assédio Moral – A Violência Perversa no Cotidiano. Bertrand Brasil, 223 pp.).


O conceito de ‘importância’


Na carta-resposta da Globo há uma nítida tentativa de desqualificar Rodrigo Vianna e mesmo uma sutil indução a se acreditar que o jornalista estava fora de suas faculdades mentais. Isso pode ser visto no segundo parágrafo (‘Lamento que tenha perdido o equilíbrio’) e no sexto parágrafo (‘A confusão de idéias que o Rodrigo Vianna expressa…’. Mas isto não é novidade. Aconteceu antes, com a repórter Cristina Guimarães, que, segundo a própria, foi ameaçada por bandidos e não recebeu proteção da empresa. Ela, que fazia reportagens arriscadas com câmeras escondidas, como Tim Lopes, teve que abandonar a Globo e hoje vive em local desconhecido. Quando foi contar a história, disseram tratar-se de pessoa desequilibrada.


Por fim, vale ressaltar que a carta-resposta da Globo afirma que seu noticiário ‘em nada foi diferente dos demais veículos de importância’. Seria interessante debater o conceito de ‘importância’ para a Globo. Se veículos importantes são aqueles mais vendidos, em qualquer sentido, tudo bem. Se são os veículos que enriqueceram apoiando a ditadura e hoje enriquecem defendendo o neoliberalismo, ok. Mas se importância quer dizer respeito pela inteligência do leitor, seria preciso retificar a carta.


Disso tudo, porém, o mais importante é que os movimentos sociais e as instituições públicas deste país acordem imediatamente. E façam cumprir os artigos 220 e 223 da Constituição Federal. Ministério Público, Judiciário, Senado, Câmara dos Deputados e o Executivo Federal devem impedir a existência de monopólios e oligopólios nos meios de comunicação social, além de garantir o funcionamento de um sistema público de comunicação de alcance nacional e com acesso para todos.


Não adianta acreditar que o Brasil será uma democracia enquanto uma emissora de TV – qualquer uma – concentrar 50% da audiência e 75% das verbas publicitárias.

******

Jornalista, editor do FazendoMedia