Na semana passada, um tribunal venezuelano proibiu os jornais do país de publicarem fotografias de vítimas de assassinatos. O fato foi noticiado no Brasil com bastante destaque, mas os fundamentos que estão por trás da medida não foram bem explicados. O assunto merece menos alarmismo e um pouco mais de atenção.
O episódio é sintoma da precoce degeneração de uma doutrina que subordinou a comunicação social aos ditames da segurança da pátria e que, levada ao extremo, vem conferindo ao Estado a função de zelar pela qualidade do jornalismo. A censura às fotos, em si, é patética e caricata, mas a doutrina que a inspira ainda preocupa.
Por certo, já se tornou ocioso protestar contra o autoritarismo de Hugo Chávez, que sucumbe aos seus defeitos ao ritmo que se distancia de suas promessas; em nome de aspirações coletivas, muitas delas legítimas, o governante montou para si mesmo um regime avesso às críticas e à renovação, adepto de militarismos e do culto à personalidade, que vai gerando infelicidade, medo e fracassos. Não há muito que fazer em relação a isso, a não ser lamentar. Mas a origem e os desdobramentos daquela doutrina autoritária, que ainda ilude entusiastas em todo o continente, isso é preciso entender com mais profundidade. É preciso aprender com a experiência, enfim.
Publicações militantes
A pedra angular dessa doutrina pode ser lida na Constituição da República Bolivariana da Venezuela, de 1999. O artigo 58, sob o disfarce de condenar expressamente a censura, veio para consagrar as razões mesmas da censura. Uma contradição involuntária do legislador apressado? Não: o artigo 58 é isso mesmo, um truque para autorizar a intervenção do Estado na imprensa.
Diz o texto:
‘(…) Toda persona tiene derecho a la información oportuna, veraz e imparcial, sin censura, de acuerdo con los principios de esta Constitución, así como a la réplica y rectificación cuando se vea afectada directamente por informaciones inexactas o agraviantes.(…)’
À primeira leitura, tudo bem. Além de repelir a censura, esse artigo enaltece o direito de todos à informação ‘oportuna, veraz e imparcial’. Nada nessa ideia parece impróprio, nada parece errado.
Nada a não ser aquilo que o artigo não diz que diz. Com seu palavreado épico, valente, próprio de uma Constituição que se propõe a ‘refundar’ uma República ‘protagônica’, o texto contém uma armadilha essencial. Ao afirmar o direito de todos à informação ‘oportuna, veraz e imparcial’, lança suspeitas sobre o direito que todas as pessoas também têm às informações que, na opinião das autoridades, talvez sejam de veracidade duvidosa, inoportunas e nem tão imparciais assim. Com sua malícia retórica, a Constituição venezuelana põe no ar uma dúvida: quem é que vai dizer se a informação é ‘oportuna, veraz e imparcial’? O juiz? O Poder Executivo? A polícia?
A tradição democrática ensina que isso não é papel do Estado. A célebre Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que impediu os congressistas de legislarem contra a liberdade de imprensa, data de 1791. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da França, com sua defesa da livre comunicação das ideias como um dos direitos ‘mais preciosos’ do homem, é de 1789. Naquela época, tanto na América como na Europa, praticamente inexistiam jornais equilibrados, desapaixonados, imparciais, oportunos etc. Na América, havia publicações abertamente militantes, partidárias, que não hesitavam em recorrer à calúnia sanguinária. Em Paris, os filósofos e seus devezenquandários não redigiam noticiários isentos; empenhavam-se no proselitismo e na apologia do novo regime, que celebrava o individualismo, a propriedade privada e a guilhotina.
Estado bruto
A História ensina que, nos Estados Unidos e na França, a conquista da liberdade de imprensa não veio para premiar jornalistas bem comportados, mas para garantir ao cidadão o direito de dizer o que bem entende, no tempo que quiser. A liberdade não foi o coroamento da ética jornalística, mas o seu pré-requisito: a ética de imprensa só se pode desenvolver em liberdade. Com o tempo, o jornalismo melhorou, ao menos um pouco, e a democracia se aperfeiçoou, estabelecendo formas de punir os excessos e os abusos da liberdade. Mas, atenção, o julgamento e a punição dos erros ocorrem depois que os erros são publicados; o direito fundamental que todos temos de publicar aquilo que pensamos não pode ser violado, não pode sofrer cerceamentos por antecipação.
O artigo 58 da Constituição Bolivariana é contra essa conquista da humanidade – que veio com o liberalismo, é verdade, mas se firmou como direito de todas as pessoas, sejam elas de direita ou de esquerda, tanto faz. O artigo 58 esconde a conquista desse direito universal. As pessoas não têm direito apenas à informação ‘oportuna, veraz e imparcial’, mas também a notícias que, na opinião das autoridades, talvez não atendam a esses requisitos. Elas têm o direito de ler publicações que juram ter entrevistado duendes e extraterrestres, ou panfletos declaradamente parciais, principistas e inoportunos. Não pode caber ao Estado – por nenhum dos seus três Poderes – dizer se a informação é ou não é ‘veraz’ ou ‘imparcial’. Cabe a cada cidadão julgar isso por si mesmo, isso sim.
Quando um veículo jornalístico, livre de ingerências governamentais, assume compromisso com a informação ‘oportuna, veraz e imparcial’, isso até pode ser uma boa notícia (se não for puro fingimento). Agora, quando o Congresso Nacional aprova na sua Lei Maior a separação doutrinária entre a informação ‘oportuna, veraz e imparcial’ e as outras informações, aí a notícia é tenebrosa. E dá no que vem dando.
A lei não melhora o jornalismo, mas pode piorá-lo, assim como pode embrutecer o Estado e infernizar a vida em sociedade. A Venezuela que o diga.
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Os jornais empobrecidos – Mariana Timóteo da Costa
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Jornalista, professor da ECA-USP