Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Uma indignação indigna

Há ocorrências diárias no mundo globalizado que nos remete aos pensamentos clássicos da Ética e da Filosofia Política. Caso paradigmático é a repercussão que ocorreu (e ocorre) no mundo islâmico, devido à publicação de charges do profeta Maomé num jornal dinamarquês, que nos obriga a pensar sobre a possibilidade (ou não) de uma ética universal, uma velha ‘esperança’ desde o advento do Iluminismo e da Declaração do Direitos Humanos. Tal fato parece corroborar a impossibilidade da constituição de uma ética que tenha validade universal para os homens, na medida em que algo aparentemente banal para a cultura ocidental, a manifestação livre de idéias, o que supostamente é um direito inalienável do homem, também supostamente pode ir no sentido contrário aos preceitos morais de uma religião, criando indignação nos muçulmanos, a ponto de chegar a se colocar em dúvida a validade universal desse direito. Afinal, até que ponto podemos manifestar nossas opiniões sem causar dano a alguém? Como reparar algo dito livremente, quando o dito ofende outras pessoas?

Não entro no mérito se o jornal tinha ou não o direito de publicar tais charges: sem dúvida que tinha, tanto que publicou, pois é um direito assegurado na constituição dinamarquesa a livre manifestação de idéias. Também não entro no mérito se os muçulmanos tinham o direito de se indignar com o fato: sem dúvida tinham, tanto que estão se manifestando até mais ‘livremente’ do que os dinamarqueses ousariam se manifestar, afinal, esses últimos manifestaram uma opinião, que é uma liberdade elementar, enquanto os muçulmanos estão realizando ações, muito mais do que simplesmente manifestar seu desacordo (o que sem dúvida é um direito elementar).

Discordâncias sempre são possíveis quando se manifesta publicamente uma opinião. Até aqui não haveria nada demais, senão um mero confronto democrático de posições. O problema em questão nesse momento é inteiramente outro.

Retratação e punição

Não está ocorrendo uma livre manifestação de idéias, mas uma guerra cujos fins são obscuros e cujo resultado provavelmente será um distanciamento ainda maior entre o Ocidente e a cultura islâmica, caso o Ocidente não tome posições mais enérgicas para impedir que culturas intransigentes queiram se impor no cenário mundial, recriando e cimentando a lei da vingança como forma de gerir os desafetos mútuos.

Uma reação em cadeia foi gerada por algo corriqueiro no Ocidente, onde cada povo mulçumano quer demonstrar mais indignação do que outro para, talvez, aparentemente, salientar sua maior ou menor fé nos preceitos religiosos islâmicos: parece que quanto mais fogo e pedra atirada contra o ‘inimigo’, maior é a fé ¡V muito estranha essa forma de manifestar a fé.

Interessante notar que tais manifestações ‘democráticas’ ocorrem em países que não se caracterizam pela liberdade de manifestação, pelo contrário, estão impedidos de manifestarem sua indignação contra seus governos, mas foram ‘liberados’ ou se tornaram (só para esse tipo de manifestação, salientemos o fato) ‘incontroláveis’ aos governos locais para se manifestarem, incendiarem, destruírem embaixadas e bens estrangeiros.

Ora, eles só sabem do mundo ocidental através de jornais que estão sob controle e só publicam o que interessa aos seus governantes, não têm os direitos primários de informação que qualquer cidadão necessita, pois a censura é pública e notória nas localidades islâmicas. Como sabem dessas charges se não têm acesso aos jornais ocidentais, e pouco podem saber sobre infinitas outras coisas que os ocidentais realizam? Enfim, é tudo muito estranho, principalmente porque, nessas manifestações de indignação, ou mesmo quando vão manifestar sua religiosidade e fé, morrem pessoas, matam-se entre si, correm uns sobre os outros, gritam e atiram para todo lado.

Tais países e povos exigem uma retratação, um pedido de desculpas, uma punição e, provavelmente, alguma indenização pecuniária pelos males provocados do governo dinamarquês, que por sua vez não é responsável pelo jornal. Como para eles a religião não é uma escolha, mas uma obrigação, tais populações não entendem o mundo ocidental, onde o Estado é laico e não tem o direito de interceder nas escolhas pessoais dos cidadãos, pelo menos, não enquanto agem segundo as leis que garantem a cada um a sua crença. Aliás, não somos nem ao menos obrigados a ter religião, como os povos muçulmanos que seguem apenas os preceitos legais que mantêm uma equivalência jurídica entre princípios morais religiosos e leis estatais, enquanto para os ocidentais a moralidade e a juridicidade são instâncias distintas, uma se referindo à vida privada e à outra a vida pública.

O outro, o ocidental

O jornal (o único responsável por essa manifestação de opinião) que publicou as charges já pediu desculpas, que dificilmente serão aceitas, pois para os muçulmanos se fez algo imperdoável. Naturalmente, nunca deveria ter publicado esse pedido de desculpas, pois nada fez de imoral ou antiético, e não se deve ceder a pressões e chantagens advindas da força bruta e da violência. O governo dinamarquês não tem responsabilidades com o jornal, que é independente, contrariamente aos jornais do mundo muçulmano; ele não está sob a responsabilidade do governo de plantão, portanto, nem o povo nem o governo dinamarquês podem ser responsabilizados pelas ações autônomas do jornal.

Com certeza, o antes ilustre desconhecido do mundo e hoje mundialmente, ou globalmente, conhecido Jyllands-Posten, jornal dinamarquês, que até setembro passado só tinha o seu público na própria Dinamarca, provavelmente jamais imaginou (nem poderia) que haveria tal repercussão. Podemos debater se deveria ter estampado ou não na primeira página do jornal essas charges (para mim engraçadas, e antes de falar mal de Maomé, ou mesmo ofendê-lo, faz uma crítica poderosa e irônica de alguns muçulmanos que não percebem a loucura da idolatria), mas isso seria uma discussão mais sobre etiqueta do que propriamente sobre ética.

Ora, em princípio não há nenhum problema nisso, pois as pessoas são livres para comprar ou boicotar os jornais de acordo com a sua consciência: se considero ofensivo determinadas manifestações, simplesmente não as adquiro, mudo de canal, desligo o rádio, olho para outro lugar. Ficar ofendido a ponto de gerar ódio, ainda que muito humano, desencadeia, quase sempre, ressentimento e vingança, antes que justiça ou reparação. A indignação é justa apenas quando tenta educar o outro sobre o mal cometido, não quando serve de vazão a ódios seculares e catalisa toda a impotência de populações oprimidas pelos seus governantes contra povos e governos ocidentais, desviando a atenção das incompetências nacionais e procurando culpabilizar o estrangeiro, o outro, o ocidental pela falta de capacidade própria.

Reciprocidade razoável

Nesse sentido, não são os direitos humanos como ética universal que são falhos, inviáveis ou mesmo utópicos, apenas pressupõem que haja razoabilidade nos homens. Mas, ainda que muitas culturas dificultem a obtenção de uma razoabilidade aparentemente apenas ocidental, deve-se atuar para torná-las razoáveis para a convivência pacífica. Do contrário, será a guerra. Penso que a favor de todos caberia a luta por uma zona de consensos comuns.

Governos e súditos muçulmanos desejam impor ao mundo ocidental sua forma de ser e pensar. E o que é pior, devido ao fanatismo e ao temor dos suicidas islâmicos, o mundo ocidental se retrai e acaba cedendo às pressões imorais e antiéticas. Jornais norte-americanos, ainda que defendam a liberdade de opinião, condenam a publicação das charges e não as publicam, o que seria uma maneira de se solidarizar com o jornal perseguido pelo ódio islâmico (provavelmente com temor de serem alvos dos terroristas). Como no caso de Salman Rushdie, que muitas editoras findaram não publicando seu livro Versos satânicos por medo de atentados, ou livrarias se recusavam a vender ou expor o livro, publicações respeitáveis estão cedendo e se rendendo ao medo que a cultura islâmica está impondo ao mundo ocidental, em vez de agirem no sentido de impedir que se continue a aterrorizar o mundo com as intransigências do fundamentalismo islâmico.

Claro que os muçulmanos têm o direito de se indignar, de manifestar sua indignação, até mesmo de boicotar produtos dinamarqueses, jornais, revistas, enfim, tudo do mundo ocidental (não estão obrigados a comprar o que não querem), porém não têm o direito de impor penas a nós, ocidentais; afinal, nada foi feito contra eles, muito menos podem explodir pessoas ou destruir embaixadas ou bens de cidadãos de outro país.

As charges não foram publicadas lá nos seus países, mas numa parte do mundo onde se cultiva um certo humor, que pode até ser politicamente incorreto, mas mesmo assim é permitido. Assim como os dinamarqueses não exigem que a poligamia dos muçulmanos, ou o machismo, o sexismo e o racismo nos países islâmicos sejam punidos com prisão, pois tratam as mulheres como servas e escravas, pedem a morte de todos os povos que não são muçulmanos, matam homossexuais, enfim, onde a única pena que se conhece é a pena de morte (que é proibida na comunidade européia), nem pede reparações ou retaliações de seu povo a esses povos, numa reciprocidade razoável muçulmanos também não podem exigir que a Dinamarca se submeta aos seus ditames legais, morais e religiosos.

Princípio universal

Porém, temo que estejam ganhando a guerra. Impuseram o medo ao Ocidente não porque agora acreditamos que arderemos no mármore escaldante do inferno islâmico, mas porque tememos que fanáticos possam explodir qualquer um em qualquer lugar. A imprensa, os governos, enfim, o mundo ocidental, ajoelhado ao mundo muçulmano que, por sua vez, está deitado no petróleo escravizador dos desejos de consumo do Ocidente, principalmente o carro, não toma uma atitude de protesto contra tais nações e povos.

Jornais deveriam reagir a isso e se mostrar solidários com esse pequenino jornal. Governos deveriam manifestar indignação contra as indignidades que as nações muçulmanas estão cometendo contra o mundo ocidental, e a Dinamarca em particular, pois que apenas manifestam ódio e ressentimento quase doentio, gerando com isso inseguranças e lógicas conspiratórias que só levam a reações raivosas e irrefletidas, incitadas por uma imprensa tendenciosa dos países islâmicos.

Se querem fazer parte da comunidade internacional, se querem ser respeitados em suas convicções, os países islâmicos precisam respeitar as normas que regem as relações internacionais, assim como se respeitam vários hábitos e costumes islâmicos que são ofensivos a uma moral mais liberal como a ocidental, e, principalmente, respeitarem nossas convicções nas liberdades de idéias como um fator positivo para o desenvolvimento humano e mundial. Antes de tentar criar éticas mais ‘brandas’ que se podem adequar mais facilmente às moralidades ou às idiossincrasias diversas dos povos, deve-se afirmar o princípio ético universal até o momento cristalizado nos Direitos Humanos.

Inferno terreno

Devemos afirmar categoricamente aos países muçulmanos: não está errada a indignação, está errada a forma de manifestá-la, muito indigna para pessoas que dizem crer num deus tão poderoso. Se tivessem sido indiferentes, ou superiores, não se rebaixando a se mostrarem ofendidos por tão pouco, já que são donos da verdade eterna e os ocidentais são tão inferiores, provavelmente o mundo não saberia da existência dessas charges. Assim como ninguém sabia da existência dos Versos satânicos até que contra ele foi realizada não uma mera censura, mas decretada uma pena de morte. Acredito que um deus forte cativaria seus crentes antes de matar os infiéis; então, ou a fé deles na força divina é fraca ou seu deus é fraco e, portanto, depende dos homens para sobreviver, senão sucumbe diante do mero riso dos homens.

Mas, temos que equilibrar a balança, afinal eles estão apenas reagindo a uma ação de indiferença e superioridade que o Ocidente manifesta com a cultura e a religião islâmica, que são tão caras aos seus seguidores, e isso há vários séculos seguidos. O ódio é até compreensível, ainda que jamais possa ser justificado. Na verdade, não há culpados, mas atos impensados e passionais para todos os lados, intolerâncias mútuas, intransigências recíprocas. Ninguém pensa muito no outro, essa é a mais simples verdade. Talvez devamos colocar avisos e lembretes sobre nossas obras, revelando que elas podem ser ofensivas do ponto de vista de muçulmanos ou de fundamentalismos religiosos de uma forma geral.

Ora, não custa criarmos etiquetas para a relação recíproca. Precisamos deixar bem claro às diversas culturas desse mundo que o Ocidente não faz seus gestos de opinião, humorísticos ou não, só por maldade, mas, às vezes, por ignorância ou soberba, e por vezes até com alguma sabedoria, mas que faz parte de seus hábitos e de suas crenças, e que desejamos continuar a respeitar seus hábitos nos seus habitats, e que nos permitam realizar os nossos, seja perto do Pólo Norte, seja aqui nos trópicos. Sentemos para negociar regras de convivência pacífica ¡V afinal de contas, independente do céu ou do inferno que se obterá após a morte, se é que existem essas coisas, o problema é o inferno que está se transformando a própria vida terrena, acabando por fazer com que nem se deseje mais a vida após a morte…

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Professor-doutor em Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)