A indagação foi postada nas redes sociais feito garrafa lançada ao mar, sem destinatário certo: “Onde podemos nos sentir seguros? Onde podemos ser livres? Onde podemos ser negros?”. Era o resumo da desesperança da América negra após a chacina racial na Igreja Metodista Emanuel de Charleston, estado da Carolina do Sul. Uma interrogação que não se imaginava mais necessária nem urgente.
Em 1863, quando Abraham Lincoln pronunciou o crucial discurso de Gettysburg sobre o qual foi construída a ideia de nação, ele alertou para a “obra inacabada” que o país ainda tinha pela frente. Por certo não imaginou que entre 1877 e 1968, ano do assassinato de Martin Luther King, ainda ocorreriam quase quatro mil linchamentos de negros por supremacistas brancos. E que mais de 25 cidades do país teriam suas comunidades negras atacadas em um único verão, o sinistro “Verão Vermelho” de 1919.
À luz da profusão de dados divulgados desde a matança em Charleston, fica-se sabendo que entre 1995 e 1998 houve mais de 700 atentados ou tentativas de ataques à bomba contra locais de culto da população negra. Basta repetir esse dado — mais de 700 episódios em três anos — para entender que a pergunta “Onde podemos ser negros?” nada tem de retórica.
Nela está embutido o tenebroso retrocesso histórico e a frustração coletiva do negro americano em 2015. Para os filhos e netos da geração que em 1963 entoou “We Shall Overcome” com Martin Luther King coberta de cicatrizes, porém vitoriosa, nada há a comemorar. Ser negro em 2015 é se sentir invisível. Ser negro e jovem nos Estados Unidos de hoje é ter no horizonte um embate com a polícia, a Justiça, o abuso. A terra conquistada no passado voltou a lhe ser estrangeira.
O retrato desse revés esteve no semblante do presidente Barack Obama durante a fala em que compartilhou com a nação seu pesar por mais essa chacina. Era a décima quarta vez desde sua eleição a ter de prestar homenagem a vítimas americanas de fuzilarias selvagens praticadas por matadores que, além de brancos, são ultra-americanos.
Quem aguarda com ansiedade um discurso histórico de Obama sobre a urgência de uma América pós-racial provavelmente terá de se contentar com a leitura de suas futuras memórias, na condição de ex-presidente. Ele já deu provas suficientes de que, enquanto estiver na Casa Branca, evitará obrigar a nação a se confrontar com uma questão que Abraham Lincoln sabia estar não resolvida 200 anos atrás.
Terrorismo doméstico
Mas há outro aspecto embutido na chacina de Charleston que, ao contrário dos atentados de extrema-direita anteriores, talvez não consiga ser escamoteado desta vez. Imagine-se que o perpetrador não tivesse sido o americano de franjinha loira Dylann Roof, de 21 anos, e sim um muçulmano de feições escuras bradando “Allahu Akbar”. Tanto a narrativa na mídia americana teria sido diferente como seria diferente o aparato de segurança nacional acionado para lidar com o caso.
Segundo dados levantados pela Fundação New America, 26 pessoas foram mortas por ataques jihadistas nos Estados Unidos desde o 11 de Setembro. No mesmo período, atentados praticados por extremistas racistas e militantes antigoverno americanos mataram 48 pessoas. Ainda assim, a resistência em classificar as chacinas domésticas de atos terroristas é enorme. Prefere-se atribuir essas matanças a atos isolados praticados por jovens problemáticos — os chamados “lobos solitários” com problemas mentais.
Se a definição mais genérica de terrorismo é um ato de violência contra civis por indivíduos ou organizações com propósitos políticos, é hora de definir os atentados racistas como terroristas e tratar do assunto como questão de segurança nacional verdadeira — a do futuro de sua gente.
O apresentador Jon Stewart, hoje a voz mais respeitada da televisão americana, deixou de lado o habitual tom satírico e fez o desabafo que nenhum homem público teve coragem de fazer:
“Nós invadimos dois países, gastamos trilhões de dólares, inutilizamos milhares de vidas de soldados americanos e disparamos máquinas da morte não tripuladas sobre cinco ou seis países para garantir a segurança dos Estados Unidos. Nós até torturamos em nome da segurança nacional. E aqui, fazemos o quê? Damos de ombros. Falamos em ‘uma tragédia visitou essa igreja sagrada’. Não, isso não foi uma tragédia. Tornados são tragédias. Isso é racismo, preto no branco, é terrorismo doméstico, nada a ver com lobo solitário, é matilha. Al-Qaeda? EI? Eles não são nada comparados com o que nós fazemos contra nós mesmos, regularmente”.
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Dorrit Harazim é jornalista