A cidade do Rio de Janeiro viveu, nas três últimas décadas, um grande dilema. Salvo a Zona Sul e outras partes ‘nobres’ da metrópole, a grande maioria dos moradores – aqueles de vivem nas centenas de favelas cariocas – estava dividida. De um lado, um Estado corrupto, que mantinha estreita conexões entre várias modalidades do crime, como o jogo do bicho, por exemplo – e que, por sua vez, operava de dentro da máquina estatal, corrompendo políticos e outras autoridades; uma das polícias mais violentas e viciosas das Américas (talvez do mundo!); uma sociedade dividida entre o glamour da zona sul e a miséria das favelas. Enquanto isso, de costas para as comunidades carentes, o Estado permitia o adensamento exponencial do tráfico de drogas, que ampliou seus domínios, aumentou seu ‘poder de fogo’, corrompeu autoridades, monopolizando, com o tempo, uma extensa rede de ‘serviços criminosos terceirizados’, concretizados, atualmente, nas milícias.
As comunidades estavam reféns entre o ‘ruim’ e o ‘péssimo’. O ruim representado pela omissão estatal, que sonegava aos cidadãos cariocas a cidadania, permitindo que os moradores das favelas fossem reféns de todos os males do tráfico sem controle. E o péssimo representado pelos traficantes – que num primeiro momento (década de 1980) supriam os serviços públicos deficitários (comprando medicamentos para os doentes, cedendo vales-transporte para os necessitados etc.), e com o passar do tempo começaram a cobrar um altíssimo preço (que variava da conivência à participação compulsória nas atividades do tráfico).
A onda de violência associada ao tráfico de drogas começou a transbordar das favelas no final da década de 1990. E chegou a incomodar a ‘turma da zona sul’ – aquelas madames e seus playboyzinhos que sempre consumiram as drogas do morro, mas que não queriam saber dos problemas sociais ocasionados pelo tráfico. E o assunto virou notícia na mídia – que tem entre seus principais consumidores, notadamente, a classe média.
O ‘tudo ou nada’
Desde então, os sucessivos governos fluminenses, muitas das vezes apoiados pelo governo federal, fizeram todo o tipo de pirotecnia sem enfrentar verdadeiramente o crime, que se espraiou em toda a sociedade local, adentrando perigosamente a máquina do Estado. Muito show midiático e, como todos sabemos, pouquíssimos resultados objetivos. Após os shows, aquelas invasões sem resultados, muitas transmitidas ‘ao vivo’ – como agora (que vitimavam mais os moradores que os criminosos) – e tudo voltava ao que era antes… ou seja, ao reino da desordem civilizacional.
Resumindo a cantilena: os criminosos, como fizeram em Sampa, há quatro anos, resolveram, esta semana, colocar as ‘barbas’ pra fora. Enfrentando o Estado de forma descarada, orquestrada e sem medo e colocando a população civil, mais uma vez, em pânico. E, como ocorrera em São Paulo, as ordens para as badernas partiram de dentro das prisões – ou seja, o Estado é tão tacanho que não consegue, sequer, controlar as prisões… Estamos perdidos!
Como todos sabemos, não restava outra alternativa que não o enfrentamento dos bandos de traficantes. O governo não preparou esta ação e só houve união de forças (estadual e nacional) porque frente à barbárie que se abatia dia após dia sobre o Rio outra alternativa não existia. Era o ‘tudo ou nada’… nas palavras de um policial.
Uma vitória com ares de derrota
A população aplaude. A mídia incensa. O governador comemora. O ministro da Justiça se vangloria… Tomara que no final o Estado democrático vença o crime – que a cada dia vai se organizando no Rio e em outras cidades brasileiras (diga-se de passagem).
Mas não tenho a menor dúvida. Se os governantes cariocas (com ou sem apoio federal):
(1) não enfrentarem o problema da corrupção e da violência de suas polícias – esse foi o primeiro passo para as grandes vitórias contra o crime em Nova York e em Bogotá, na Colômbia;
(2) não desarticularem as milícias – que são a nova ‘cara’ do crime no Rio – e hoje têm uma organização comercial estupenda;
e, por fim (3) não oferecerem saídas para os jovens das favelas e tratamento para os dependentes das drogas…
Se isso não for feito, mais uma vez teremos a vitória de Pirro. Ou seja, o espetáculo midiático-policialesco patrocinado pelos governos estadual e federal (com os aplausos de uma imprensa sensacionalista) nos últimos dias não redundará em mudanças objetivas para as comunidades, que continuarão reféns da violência e criminalidade – ainda em boa medida associada ao tráfico, mas que já está se transmutando na violência e extorsão das cada vez mais poderosas milícias e de policiais violentos e corruptos.
Para quem não sabe, após a batalha de Ásculo contra os romanos, o rei de Épiro, Pirro, teria dado uma declaração que se tornou famosa. Ao felicitar seus generais depois de verificar as enormes baixas sofridas por seu exército, ele teria dito que, com mais uma vitória daquelas, estaria acabado. Desde então, a expressão ‘vitória de Pirro’ é usada para expressar uma conquista cujo esforço tenha sido penoso demais. Uma vitória com ares de derrota.
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Filósofo e especialista em estudos sobre Criminalidade e Segurança Pública – Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG – Crisp