Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma biografia do pai de Charlie Brown

As histórias em quadrinhos tomaram o nome do Gibi, título de uma revista lançada em 1939 pelo grupo Globo e que se tornou sinônimo de revista em quadrinhos.

Essa modalidade de publicação teve início no Brasil em 1905, com o Tico-Tico – que seguia o modelo da revista francesa La Semaine de Suzette – feita pelo jornalista Luís Bartolomeu de Souza e Silva e tendo como personagens principais, além do próprio Tico-Tico, Reco-Reco, Bolão e Azeitona.

Depois vieram fazer parte da vida do brasileiro, especialmente no idioma dos diversos personagens, uma vez que as histórias em quadrinhos são em grande parte utilizadas para fins narrativos – a ‘literatura desenhada’.

Heróis e vilões dos quadrinhos publicados na primeira metade do século passado desapareceram completamente, restando somente traços na memória de quem os leu e ainda permanece vivo: Gaginho, Cícero, Petúnia, Tiquinho e Laurajane (de Adolfo Aizen). Tocha Humana, Namor, o príncipe submarino. Outros sumiram, mas deles ficaram algumas lembranças, como o Capitão Marvel, que com a palavra mágica Shazam (cantor principal da sinagoga), transformava-se no super-herói. Outros ainda estão por aí: Fantasma, Mandrake, Superhomem, Batman. Depois, foi a entrada dos personagens de Walt Disney, que continuam fortes.

Incorrigível mulherengo

Entre os quadrinhos brasileiros, destaca-se o já desaparecido – mas recentemente reeditado – A Turma do Perêrê, de Ziraldo Alves Pinto, e a muito atual Turma da Mônica, de Maurício de Souza.

Minha mãe era adepta do dossiê elaborado por pedagogos do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep) que, em 1944, além de classificarem os quadrinhos de subliteratura, destruidores culturais, ainda garantiam que causavam preguiça mental nas crianças e as deseducavam para a leitura de livros. Portanto nada de gibis em casa, o que não me impediu de lê-los, de forma escondida, com sofreguidão.

Fato que me permite enquadrar como a grande mudança de rumos dos quadrinhos o aparecimento no Brasil, nos anos 1960, dos Peanuts (Amendoins), nome que não pegou e foram chamados simplesmente de Charlie Brown, o menino da cabeça redonda e incompreendido, que se tornou um nome nacional através da música homônima de Benito di Paula. O grupo ainda é composto por Snoopy, o beagle sonhador e genial e o mais famoso do mundo. Lucy, mal-humorada e egocêntrica, uma líder inata que tem como sobrenome Van Pelt. Linus, irmão prodígio de Lucy, cujo o cobertor de ‘proteção’ consta atualmente dos manuais de psicologia. Schroeder, pianista que à paquera de Lucy prefere se dedicar ao aniversário de Beethoven, e Woodstock, o amigo mudo de Snoopy.

O criador desse grupo foi Charles Schultz (1922-2000). Há alguns poucos anos, o escritor David Michaelis contatou a família de Shultz com o objetivo de ter acesso a documentos que lhe permitissem escrever uma biografia do desenhista. O filho Montes, deixando de lado um trabalho igual que estava tentando fazer, encarregou-se de convencer, com sucesso, o resto do clã a colaborar com David. Este, depois de ter entrevistados centenas de pessoas e ter examinado escrupulosamente 17.897 tirinhas, encontrou o artista complexo que transpirava em seus desenhos. Nas numerosas entrevistas que deu falava da sua depressão e de suas ânsias: ‘Tenho essa horrível sensação de um destino sem lutas. Acordo todas as manhãs com uma atmosfera de funeral.’ Além disso, era um incorrigível mulherengo.

Reação estética

A biografia escrita por Michaelis terá por título Shultz and Peanuts e sairá na próxima semana. Editado pela Harper Collins, é um dos livros mais esperados da estação.

Jean Schulz, a segunda mulher, ficou bastante contrariada. Conta que leu três quartos da última prova. Diz-se de acordo com o fato de que seu marido, chamado pelos amigos de ‘Parky’, era um homem melancólico, mas acrescenta que este era somente um aspecto de seu caráter: ‘Não é um retrato completo, ‘Sparky’ era muito mais que isso. Além do mais, era um homem que amava rir. Tinha uma capacidade de aceitação da vida e de seus altos e baixos que o fazia quase um budista. Possuía um ótimo equilíbrio.’ E, alfinetando Michaelis, continua: ‘David não podia inserir tudo. Mas acredito que tenha sido mais interessante para ele falar da depressão de que ‘Sparky’ sofria e da falência de seu primeiro casamento, do que dos 25 anos de felicidade que vivemos.’ E lembra, concluindo, a resposta que seu marido dava sempre que lhe perguntavam por que Charlie Brown não conseguia jamais chutar a bola: ‘A felicidade não é divertida.’

Na biografia, Michaelis descreve Shlutz com um homem extremamente generoso, dedicado aos filhos e divertido. E Joyce Doty (a primeira esposa), como uma mulher enérgica, capaz e exuberante – mas essas características encontram pouco espaço em seu livro.

Diga o livro o que disser, nada poderá apagar de Charles Schultz o fato de ter sido um dos mais importantes ‘fazedores de gibis’ do século 20, dando vida à definição de Scott McCloud desse segmento da mídia: ‘Imagens e outras figuras justapostas em uma deliberada seqüência, com o escopo de comunicar informações e produzir uma reação estética no leitor.’

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Jornalista