Após décadas de noticiários ‘burocráticos’ a respeito de ocorrências na América do Sul, é possível que a atividade jornalística, responsável pela cobertura das páginas de política internacional, tenha adquirido o hábito de uma certa acomodação. Ocorre, porém, que, após 2003, mutações aceleradas povoam o cotidiano de alguns países sul-americanos. O que se percebe, na grande imprensa brasileira, frente a acontecimentos que se sucedem em países como Venezuela, Bolívia, Equador e Colômbia, é um absoluto descompasso quanto ao que os jornais noticiam. Proponho, portanto, a análise de algumas questões que a imprensa brasileira, por razões obscuras (ou, quem sabe, por motivos claros), não aborda.
A imprensa brasileira parece não se dar conta do que está em marcha em países vizinhos. Há dias, deu-se um rompimento diplomático entre os governos da Venezuela e da Colômbia. Trata-se de um fato com proporções graves. Entretanto, o noticiário nacional o fez passar como um ato quase corriqueiro. Se não se trata de irresponsabilidade, haverá de ser indigência crítica e analítica. Tentarei, nas fronteiras deste modesto artigo, esboçar algumas proposições a respeito das mutações que se situam no palco da política sul-americana.
O surgimento de líderes políticos como Lula, Chávez, Morales e Rafael Correa gerou, na viciada paisagem sul-americana, um quadro no qual não há possibilidade de ser compreendido à luz de conceitos (e, menos ainda, de preconceitos) cristalizados por cartilhas da tradição. Se os nomes citados, de um lado, sugerem filiação, não é menos verdade que, por outro lado, revelam disjunções. É nesse aparente paradoxo entre ‘convergência’ e ‘divergência’, ou ‘aproximação’ e ‘distanciamento’, que a cobertura jornalística não consegue encontrar a mobilidade necessária.
‘Conservadorismo’ e ‘reacionarismo’
O primeiro exercício de mobilidade crítica a ser exercido começa na própria experiência política brasileira. De 2003 até a presente data, há de se promover a seguinte avaliação antitética: a) é lamentável que Lula, na presidência da República, tenha renunciado às bandeiras da retórica do passado; b) é louvável que Lula, na Presidência da República, tenha tido a sensatez de arquivar bandeiras do passado.
É certo que Lula não dispõe de refinada substância intelectual. Igualmente correto é o reconhecimento de que o que possa faltar de sofisticação intelectual é compensado pela requintada astúcia em perceber quais são as linhas de força atuantes no país. Para compreender-se o que pode significar essa ‘lógica da contradição’, basta imaginar-se em qual quadro político e institucional teria mergulhado o país, se a eleição de Lula, no Brasil, tivesse sido o que se instalou na Venezuela, Bolívia e Equador.
Em parte, o raciocínio não é difícil: Lula optou pelo sábio caminho de fazer o possível aceitável, evitando o provável conflituoso. Com essa estratégia, Lula fortaleceu a imagem de líder político, em lugar da titulação (discutível, no mundo de hoje) de ‘estadista’. O que alguns não entendem é que Lula é muito maior que o PT. Um dos equívocos provém do fato de petistas não terem aprendido essa lição.
O resultado é que Lula tirou, simultaneamente, o tapete da direita e da esquerda. É nítido que Lula procura extrair o que foi virtude em Getúlio Vargas e Jango, eliminando o que, em ambos, fora defeito e fragilidade. Daí que a condução dos dois mandatos segue na calmaria devida. Se Lula houvesse optado pelo caminho da retórica que, hoje, se encontra nas hostes do PSOL e ainda em redutos petistas, tenho a certeza absoluta de que o país estaria vivendo um dos seus piores cenários. Lula soube muito bem afastar-se da ‘esquerda ingênua’ e neutralizar focos de uma ‘direita feroz’.
Não, o Brasil, a começar por sua imensa territorialidade, não é Venezuela e, menos ainda, Bolívia e Equador. Se a imprensa brasileira quiser entender a figura de Lula, tem a obrigação de conhecer a diferença entre ‘conservadorismo’ e ‘reacionarismo’. Por outro lado, a ‘esquerda ingênua’ precisa, urgentemente, reciclar-se e perceber a diferença entre ‘revolução’ e ‘transformação’.
Um quadro de ‘blocos’
Na lógica flexível, pode-se conservar, transformando. A diferença está na ‘velocidade’. Não se fez revolução, na história da civilização, sem o custo de milhares de vidas: entre outros, o rei Leopoldo II, na Bélgica, exterminou 10 milhões; Hitler, na Alemanha, dizimou 21 milhões; Stalin, na União Soviética, eliminou 43 milhões; Mao Tse-tung executou 77 milhões. Os revolucionários não pensam em vidas; orientam-se apenas por resultados rápidos. Quantos milhões, em tempo recorde, morreriam no Brasil, em nome da implantação de aceleradas medidas salvíficas? Então, façamos, agora, um corte suspensivo e vamos à situação dos países vizinhos.
Antes de qualquer avaliação, há de se fazer uma pergunta: quem pode listar nomes expressivos de escritores, pintores, dramaturgos, compositores, cientistas e pensadores que, ao longo da história, se tenham marcado, como referências, na cultura ocidental, provindos da Venezuela, Bolívia e Equador? Invoque-se o que quiser, o fator determinante para a inserção de uma nação no mundo ainda é o que a inteligência de uma nação é capaz de oferecer ao restante do mundo. Por esse critério, o Brasil se distancia dos demais mencionados.
O critério não é, bem sei, de bom tom diplomático. Contudo, será falso? Segunda indagação: o ‘grande líder’, Chávez, que teve o ‘épico’ gesto de romper relações diplomáticas com o governo da Colômbia, assim se portou em relação ao governo de Bush, suspendendo a venda do petróleo venezuelano para os EUA? Não. Então, no mínimo, a atitude de Chávez é passível de desconfiança. Outro ponto obscuro diz respeito ao fato de Chávez, em prejuízo de maiores investimentos na área social, aplicar gastos de receita pública em armamentos, o que está obrigando países vizinhos – inclusive o Brasil – a igual procedimento.
Quem lucra com tal estratégia? Contra quem o governo venezuelano se fortalece, belicamente, ao comprar sucata armamentista do espólio da antiga União Soviética? Contra quem o governo ‘bolivariano-chavista’ pretende insurgir-se? Ou tudo não passa de ‘jogo de cena’ que força outros países do continente a, igualmente, renovarem seus armamentos? Afinal, onde está o ‘inimigo’ de Chávez contra quem ele precisa apontar seus ‘novos’ velhos armamentos? Serão os EUA o alvo? É de rir. Quem, então, haverá de ser? A Colômbia? Mais ainda haverá para risos.
Será, especulando em direção à espiral ensandecida, uma estratégia geopolítica que, em nome da autonomização da Venezuela, em parceria com os governos boliviano e equatoriano, o ‘histriônico’ líder venezuelano pretenda uma ‘invasão’ na América do Sul? Não parece crível. Por outro lado, é fato que, progressivamente, se vai delineando, na geopolítica sul-americana, um quadro de ‘blocos’ matizados por diferentes ‘colorações’.
A perspectiva histórica
É nítido que o Brasil forma, com Argentina, Chile, Uruguai e, em menor densidade, Colômbia, um ‘cinturão de afinidades’, distanciando-o, mesmo veladamente, da frente ‘bolivariano-chavista’ a incluir Venezuela, Bolívia e Equador. Quanto a corda haverá de esticar? Outra vez, a imprensa brasileira não demonstra a devida perspicácia quanto a um possível terceiro mandato de Lula. O presidente brasileiro sabe que tensões crescerão, ao longo dos próximos anos, na América do Sul. Sua permanência no poder por mais quatro anos pode representar o ‘erro trágico’, capaz de comprometer seriamente a biografia épica até aqui conquistada.
Lula, melhor do que seus companheiros petistas, sabe que o Brasil, na gestão de seu sucessor – seja ele quem for – terá de administrar dois graves problemas: um é de caráter interno, relativo à questão energética; outro é de cunho externo, a saber, o cenário conjuntural político no nosso continente.
Se ainda quisermos arriscar em ‘leituras prospectivas’, não falta matéria. Um terceiro problema tende a agravar-se, em tempos vindouros, no tocante à Amazônia. Não sei em que nível, mas uma coisa é certa: a geração de turbulências na América do Sul interessa sobremaneira a todas as forças internacionais que depositam seu olhar na ‘posse-preservação’ da Amazônia. Sob tal aspecto, será interessante às forças internacionais que, na América do Sul, haja um cenário de divisionismo político.
Curiosamente (ou não), o fato é esse: justamente os países sul-americanos nos quais há focos de tensão política são aqueles cuja territorialidade inclui parcela (maior ou menor) da Amazônia. É prudente, pois, que a imprensa brasileira não negligencie essa questão, sob pena de, em nome da objetividade dos fatos, perder a perspectiva histórica. É hora (e já tardia) de o jornalismo brasileiro qualificar-se na direção de uma cobertura mais analítica e menos factual-imediatista.
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Em tempo: O presente artigo foi concluído antes de se conhecerem os resultados do mais recente plebiscito proposto pelo governo venezuelano. No mais, com este texto, concluo minha participação no OI. A ele retornarei sob os novos ares de 2008.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ e professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha, RJ