Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma decisão em vários atos

Em uma decisão surpreendente e histórica, as Organizações Globo admitiram que jornal O Globo errou ao apoiar editorialmente o golpe militar de 1964. Em discussões internas, o grupo de mídia já reconhecia o erro de ter concordado com a intervenção das forças armadas. O golpe que tirou o presidente João Goulart do poder mergulhou o país em uma ditadura de 21 anos. O mea-culpafaz parte do Projeto Memória, que resgata os 88 anos de história do jornal. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo pela TV Brasil na terça-feira (10/9) discutiu o impacto do gesto de O Globo na mídia e para as relações do grupo criado por Roberto Marinho com os seus leitores, telespectadores e internautas.

No texto em que admite o erro editorial, o grupo relembrou que a sociedade, incomodada com a radicalização política desencadeada pelo governo Goulart, foi às ruas pedindo mudanças. O Globo alegou que, naquele momento, o rumor de um possível golpe articulado pelo presidente com apoio dos sindicatos justificava a ação das forças armadas. E que os militares prometiam uma intervenção curta. Na seção “Erros e Acusações Falsas”, onde o jornal admite o apoio, são abordados outros momentos controversos da história da publicação. Entre eles, o caso Proconsult e a cobertura da campanha pelas Diretas Já.

A revista Carta Capital ressaltou que as Organizações Globo foram beneficiadas pela ditadura militar. A coluna da ombudsman da Folha de S.Paulo elogiou o ato de contrição de O Globo e sublinhou que a Folha nunca adotou medidas nesse sentido. Mas ressaltou que as Organizações Globo apoiaram a ditadura durante um longo período.

Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro os jornalistas Aluizio Maranhão, editor de Opinião do jornal de O Globo, e Milton Coelho da Graça, que foi diretor de Redação do jornal. Formado na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Maranhão tem 43 anos de profissão e foi diretor de Redação do Estado de S.Paulo.Milton Coelho da Graça é jornalista há mais de 50 anos. Trabalhou no Diário Carioca, na Última Hora e no Jornal do Commercio. Colaborou com as revistas Realidade, Placar e Playboy. Em São Paulo, o programa contou com a presença do jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva. Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo, Lins da Silva é mestre pela Michigan University e lecionou em várias universidades no Brasil e nos Estados Unidos. Foi diretor-adjunto de Redação da Folha de S.Paulo e do Valor Econômico.

Passado revisto

Em editorial, antes do debate no estúdio, Dines avaliou o gesto do jornal: “Penoso admitir enganos e aceitar culpas, a arrogância é sempre mais cômoda, muito menos arriscada. Por isso quando um jornal como O Globo – carro-chefe de uma das mais poderosas organizações jornalísticas do país e do mundo – admite com todas as letras, sem dubiedades, que se equivocou ao apoiar o golpe militar de 1964 e a ditadura que se seguiu, abdica da aura de infalibilidade. Ao mesmo tempo ganha o respeito, não apenas do seu público, ganha também a confiança dos pósteros”. Dines ressaltou que exceto a Última Hora, dirigida por Samuel Wainer, todos os jornais da época aderiram ao golpe. “A surpreendente atitude do Globo tem condições de iniciar um degelo em nossa vida jornalística, pode transformar-se numa primavera, desde que seja acompanhada pelos demais veículos” (ver íntegra aqui).

A reportagem exibida pelo programa entrevistou o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, que preside a Comissão da Verdade. Para ele, a atitude da empresa representa um avanço: “Euacho que finalmente as Organizações Globo dão um sinal de aceitação da democracia brasileira. Fiquei muito contente com isso, como todos os cidadãos [que] sempre torceram para que a Globo assumisse essa postura. A livre imprensa sempre é um instrumento importante para que a verdade venha à tona. E se a Globo se alinha a essa postura, é claro que isso colabora para a verdade”.

Na avaliação do cientista político Fernando Lattman-Weltman, da Fundação Getúlio Vargas, o golpe de 1964 foi um processo longo causado por um desgaste político e econômico expressivo. “Isso explica, primeiro, que boa parte da sociedade tivesse um anseio muito grande por uma nova ordem, uma estabilidade, embora não houvesse nenhum consenso sobre qual seria essa nova ordem. As pessoas queriam sair da crise, queriam sair daquele clima de instabilidade e crescente radicalização política. E havia, evidentemente, aqueles que localizavam o próprio governo no epicentro da crise”, detalhou o professor. Lattman-Weltman ressaltou que os meios de comunicação são empresas e, por isso, têm interesses comerciais e políticos que não podem ser ignorados. Para ele, a ação de O Globo em admitir o erro foi positiva, mas não é necessário “estabelecer um tribunal da História” para julgar caso a caso a postura da imprensa.

Admissão de equívocos

No debate ao vivo, Dines pediu para o jornalista Aluizio Maranhão contar os bastidores da decisão das Organizações Globo. Maranhão comentou que quando o mea-culpafoi divulgado, parte da sociedade estabeleceu uma relação equivocada entre as manifestações populares iniciadas em junho e a admissão do erro de 1964 por parte da empresa. Isso porque, em diversos protestos, manifestantes exibiam cartazes dizendo “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”. O jornalista explicou que o Projeto Memória jamais poderia ter sido gestado e posto em prática em apenas dois meses. A ideia existia havia quinze anos, época do reordenamento da governança e do administrativo da empresa, mas foi viabilizada há cerca de dez meses com a digitalização do acervo do jornal. “A partir do momento ‘podemos digitalizar o acervo’ levantou-se a questão ‘por que não aproveitar e reconhecermos o erro de 64, que já vem sendo discutido há muito tempo?’”, disse Maranhão.

Em 1998, com Roberto Marinho ainda no comando das Organizações Globo, foi criado um conselho composto pelo empresário e seus filhos e, em paralelo, um conselho editorial. Dois anos depois, houve uma ampla reunião do primeiro e segundo escalões da empresa, com cerca de 500 participantes, onde os acionistas apresentaram a missão e os valores do conglomerado. Os executivos anunciaram que a nova estrutura organizacional deixava de ter a figura de Roberto Marinho com centro da empresa e que a responsabilidade seria pulverizada entre os diretores. “Foi feita a constatação sensatíssima de que não haveria um outro Roberto Marinho”, lembrou Maranhão. Outro aspecto que levou a essa mudança foi a percepção de que o mercado se transformava rapidamente com o crescimento da internet, e a empresa precisava se adaptar aos novos tempos.

Desde então, de acordo com Maranhão, discussões sobre ética, autorregulação, direito de resposta e reconhecimento de erros têm sido cada vez mais frequentes. Em 2004, já tendo em vista o Projeto Memória, um livro sobre a história do Jornal Nacional reconhecia que houve erro na edição do debate entre os então candidatos à presidência da República Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva. O livro também admitia, em parte, equívocos na cobertura da campanha pelas Diretas Já e tratava do caso Proconsult, que o grupo considera como uma acusação infundada de manipulação.

Cúmplices ou traidores?

Dines perguntou ao representante de O Globo qual tem sido a reação dos leitores ao mea-culpa ecomo a direção do jornal tem lidado com uma possível desconfiança da sociedade sobre novos erros que possam ser cometidos. O jornalista disse que a reação raivosa de “blogs militantes e chapa-branca” já era esperada, mas confessou ter sido surpreendido, em um primeiro momento, com a revolta dos militares que estava na ativa entre 1964 e 1968. Para este grupo, imperou a sensação de as forças armadas terem sido traídas. “A História evolui. O compromisso nosso é com a credibilidade do jornal, com a própria História, não podemos ser considerados pelos combatentes daquele tempo, que persistiram no erro, como colegas solidários”, disse Aluizio Maranhão.

O editor de Opinião de O Globo ressaltou que o mea-culpafoi uma situação pontual e afirmou que a empresa não abriu espaço para um “rosário de expiações”. Há, sim, a tentativa de criar uma cultura para o reconhecimento de erros. “Nós fomos devassados pela internet. Abriram, arrombaram as portas das nossas redações, o que é muito bom. Agora, nós temos que saber usar as novas tecnologias para nos expor. E é isso que O Globo resolveu fazer”, disse Maranhão. O jornalista lembrou que a TV Globo, em 2008, colocou no ar um site em que tratava de temas polêmicos, como debate presidencial de 1989 e a cobertura das Diretas Já. Coberturas mais recentes, em que a postura da empresa foi fortemente criticada – como o caso da “bolinha de papel” lançada contra o então candidato à presidência José Serra e o acidente do avião da Gol, em 2006 – também foram abordados.

O jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva ressaltou que a admissão de culpa por parte do jornal não foi uma deliberação tomada repentinamente com base nos protestos iniciados em junho. Como consumidor de informação jornalística, Lins da Silva pôde observar que as Organizações Globo têm passado por uma mudança nos últimos anos, em busca da transparência e do reconhecimento de erros. E são ações como essas, na avaliação de Lins da Silva, que fazem o jornalismo de alguns veículos melhor do que outros. Ele considerou, por exemplo, que a divulgação dos Princípios Editoriais da empresa é um avanço extraordinário.

Primeiro passo

Para Lins da Silva, o gesto da empresa foi encarado por parte da sociedade de forma maniqueísta e reducionista. O jornalista ressaltou que reconhecer o erro de ter apoiado o golpe não torna o conglomerado de mídia infalível. “Quando um veículo resolve expor ao público o que ele pretende editorialmente, ele dá ao público o direito de cobrar quando esse veículo não cumpre aqueles objetivos que estão claramente delineados em um documento”, disse. Como exemplo desta mudança de postura, o Lins da Silva citou a cobertura das eleições realizada a partir 2002. Para ele, o trabalho das Organizações Globo nos últimos pleitos buscou a imparcialidade, se comparado com as disputas anteriores a 1989.

“Acho muito importante fazer o que as Organizações Globo fizeram: reconhecer explicitamente um erro editorial. Mas não acho que isso seja o mais importante. O mais importante é ter um comportamento editorial compatível com os princípios de transparência e de pluralidade”, disse Carlos Eduardo Lins da Silva. O jornalista ponderou que é preciso reconhecer a iniciativa pioneira da Folha deS.Paulo,que a partir de meados da década de 1970 passou a abrir espaço para outras vozes e reconhecer os equívocos: “[A Folha] fez mais do que dizer ‘nós erramos’. Implicitamente ela dizia ‘nós erramos’ mas, na prática, ela fazia a correção do erro e tem feito ao longo dos anos, a meu ver, a reparação prática desse erro. Eu acho que dizer que errou é muito bom, é importante, mas não é o fundamental”.

Milton Coelho da Graça lembrou que Roberto Marinho abrigava em suas empresas funcionários com diversas correntes ideológicas. “Eu saí da cadeia em junho de 1966 diretamente para dirigir uma empresa, do ponto de vista jornalístico, do Roberto Marinho, das Organizações Globo, que era a Rio Gráfica. E, dois anos depois, fui convidado para ser editor-chefe do Globo. Issoparece uma contradição entre a posição política do Globo, conservadora, e a ação do doutor Roberto como patrão, que sempre foi um patrão generoso. As relações dele eram singulares com os empregados. Ele fazia questão de repetir constantemente que o jornal dele tinha chegado onde tinha chegado graças ao trabalho dos empregados com ele”, disse o jornalista.

Na avaliação de Milton Coelho da Graça, ações controversas como as que foram promovidas por Roberto Marinho ao logo da sua história, sobretudo durante a ditadura militar, fazem parte da condição humana. Para ele, mais grave do que a imprensa ter apoiado o golpe foi não ter despertado rapidamente para as suas consequências. Jornais silenciaram diante de casos de tortura e alguns chegaram a emprestar as suas viaturas para o transporte de presos políticos. O jornalista ressaltou que O Globo não cometeu um erro editorial em 1964, mas sim um erro político, assim como a maior parte das demais publicações que circulavam naquele período. “O jornal acreditava naquilo que estava acontecendo”, disse o jornalista.

 

A mídia na semana

>> A inédita violência dos protestos no Sete de setembro aumentou o desnorteamento da imprensa. A prova está nas manchetes do dia seguinte, domingo: enquanto o Globo apontava para o poder dos vândalos mascarados, a Folha procurou minimizar, informando que os protestos tiveram baixa adesão. E este é justamente o problema: pequenos grupos de militantes extremamente agressivos conseguiram transformar as jornadas de junho, majoritariamente pacíficas, em provocações perigosas onde os jornalistas são agredidos e não encontram as condições mínimas para cumprir com as suas obrigações. Agredida a imprensa, agride-se o Estado de Direito.

>> Em meio à maré montante do corporativismo, no caso da prisão do jornalista Pimenta Neves que assassinou a namorada os porteiros das redações estão demonstrando razoável isenção. O noticiário sobre a decisão de conceder ao preso o regime semiaberto a que tem direito segue o curso normal, nada tem sido omitido ou minimizado. O que tem faltado à nossa mídia é a capacidade de manter aceso o interesse do público sobre casos que se desenrolam simultaneamente. O regime semiaberto para um assassino confesso não pode ser discutido de forma isolada enquanto outros julgamentos estão em curso e os réus pleiteiam o abrandamento das penas.

>> Juízes sempre foram os guardiões da lei, mas no Brasil é o contrário: os magistrados estão se convertendo em infratores, sobretudo no tocante a garantia à liberdade de expressão. No Paraná e em Pernambuco, quase em simultâneo, tesouras e mordaças escondidas sob as togas tentaram calar três grandes jornais. No paraná, o desembargador Clayton Camargo, investigado pelo Conselho Nacional de Justiça, conseguiu silenciar por poucos dias a Gazeta do Povo. Diante da vigorosa reação, voltou atrás. Em Pernambuco, o presidente da Assembleia Legislativa, o deputado Guilherme Uchoa, censurou o jornal mais antigo do país, o Diário de Pernambuco e o seu principal concorrente, o Jornal do Commercio. O censor também foi obrigado a recuar, mas a facilidade com que os meritíssimos se transformam em censores sinaliza para um surto autoritário e corporativo que um dia ficará difícil reverter.

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Lilia Diniz é jornalista