‘Não creio que a decadência da fé dogmática possa ter outra conseqüência além do bem’ (Bertrand Russell)
O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ação direta de inconstitucionalidade contra o artigo 5º da Lei de Biossegurança, que autoriza o uso de células-tronco de embriões humanos para pesquisa, traz, como pano de fundo, uma questão central do nosso tempo: a relação entre a ética e a ciência. Escrevo este artigo com o julgamento há pouco terminado e sou movido pelo entendimento de que a fé cega na técnica e na ciência como única via para a humanidade representa um equívoco tão assustador quanto os cometidos nos tempos em que a intolerância e o obscurantismo religiosos regiam as relações de poder no Ocidente.
Ética e ciência seriam perspectivas complementares? Seriam hostis uma à outra? O terremoto de Sichuan provocou uma reação íntima de revolta, mas não serviu à desaprovação moral. Foi ‘natural’, determinado por relações de causa e efeito naturais, independendo completamente da vontade e do arbítrio humanos. É diferente do que sentimos quando estamos diante de um escândalo financeiro ou do homem que espanca brutalmente um pai de família após uma briga de trânsito. Aqui se conjugam a revolta e a condenação moral porque estamos diante de eventos que, de algum modo, poderiam ter sido evitados.
Polêmica sobre pesquisas
Uma das grandes contribuições de Bertrand Russell no seu A sociedade humana na ética e na política (1954) está na postulação segundo a qual a abordagem ética conseqüente requer, antes de mais nada, uma apreciação objetiva da realidade por mais que isso fira nossas preferências ou opiniões. A escolha moral demanda uma delimitação realista do domínio do que é exeqüível. A ciência é, pois, um insumo valioso para a reflexão ética, desde que a ciência não seja encarada sob o foco unidimensional da ‘verdade absoluta’.
Ao passarmos do que existe para o que é desejável, estamos introduzindo um juízo de valor. Por mais que avance a ciência, ela nunca poderá fazer isso por nós. Qualquer ato de escolha, por mais comezinho que seja, ultrapassa o âmbito de competência do saber científico. Foi o que os ministros do Supremo, embora com posições divergentes, fizeram: uma escolha ética.
Células-tronco embrionárias humanas são promissoras para a ciência porque têm a capacidade de converter-se em qualquer tipo de tecido. Sua pesquisa pode ser a chave para compreender e eventualmente tratar várias doenças degenerativas, como o mal de Parkinson, e até alguns tipos de câncer. A polêmica sobre as pesquisas reside no fato destas células serem, geralmente, obtidas através da destruição do embrião por volta do quinto dia após a concepção.
Ciência e religião
A oposição às pesquisas se baseou em argumentos religiosos. Parte do pressuposto de que a vida tem início quando o espermatozóide fecunda o óvulo e de que o embrião seria titular de direitos análogos aos de humanos já nascidos – trata-se de uma tese não abrigada pelo arcabouço das leis brasileiras, já que o Código Civil considera o início da vida civil o nascimento com vida, embora reconheça também o direito dos nascituros.
Russell advoga em favor da perspectiva de que deveríamos abordar os assuntos morais desde o ponto de vista dos desejos dos indivíduos. Os desejos em si não são ruins, mas em determinadas ocasiões, sim, em virtude de suas conseqüências no conjunto da sociedade. O postulado calha perfeitamente à polêmica, uma vez que a Constituição consagra o direito dos indivíduos à religião, mas não permite que a crença religiosa de um grupo de indivíduos se sobreponha ao laicismo do Estado.
Russell também escreve que o castigo é importante só no sentido instrumental e não deveríamos castigar alguém só por castigar. Foi o castigo que o Supremo poupou a milhares de brasileiros que poderão alcançar com tratamentos mais eficazes para os males que os afligem hoje e que poderão ser evitados no futuro.
Acreditar que os problemas do homem sejam passíveis de solução unicamente através dos métodos usados pela ciência e tecnologia é enredar-se na cilada do cientificismo. Rejeitar os avanços científicos com base somente no argumento religioso é ainda pior: é fechar a porta ao futuro com a trava da negação da realidade do presente.
Ou, nas palavras de Bertrand Russell:
‘Parece haver a crença de que, a menos que todos os membros de uma nação sejam compelidos – seja por perseguição, seja por uma educação que destrua o poder de raciocínio – a acreditar em cousas nas quais nenhum homem racional pode crer, esta nação ficará tão dilacerada por dissensões, ou paralisada por dúvidas hesitantes, que se arruinará inevitavelmente.’
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Jornalista, Porto Alegre, RS