Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Uma ruptura nos valores da imprensa

A imprensa brasileira tenta digerir a compra do tradicional jornal americano The Washington Postpor Jeffrey Bezos, criador da empresa de comércio eletrônico Amazon. De modo geral, as reflexões dos analistas, ao abranger a questão mais ampla da decadência da mídia impressa e as possibilidades da mídia digital, acabam por dirigir o debate para um ponto que tem movido corações e mentes por aqui, em torno da espantosa ascensão do fenômeno chamado Mídia Ninja.

Por trás da aquisição do Post giram números fabulosos dessa nova economia que fez da Amazon um gigantesco conglomerado, que começou com um negócio modesto de venda de livros pela internet. Mas faturamento e lucros são apenas uma parte desse contexto, que deve incluir, obrigatoriamente, a experiência coletiva dos “ninja”, na qual o valor monetário da informação se torna um elemento secundário, ou complexo demais para ser avaliado sob os parâmetros clássicos do negócio tradicional da mídia. A curiosidade sobre o “modelo de negócio” que Jeff Bezos pretende aplicar ao Post é parecida com o que se especula sobre como sobreviverá o jornalismo “ninja”.

Sobre a aquisição do jornal pelo dono da Amazon, a melhor síntese parece ter sido feita pela revista eletrônica Salon, citada pela Folha de S. Paulo na quarta-feira (7/8): “O iceberg resgatou o Titanic”.

Para alguns especialistas, a única explicação para o negócio seria o desejo de Bezos, que domina o comércio de livros e de uma infinidade de outros produtos, de conhecer como funciona uma plataforma de distribuição de conteúdos mais “curtos”, como reportagens, artigos e entrevistas. Outros entendem que o empresário, conhecido por gastar milhões de dólares com lobistas para proteger seu principal negócio, estaria na verdade se apropriando da influência ainda considerável do Post na política americana.

Em qualquer das circunstâncias, o evento tem um significado gigantesco no processo de mudança por que passa o ambiente comunicacional em todo o planeta. Um dos principais diários do mundo muda de mãos por um valor equivalente a apenas 1% da fortuna pessoal do comprador – e essa informação basta como resumo da decadência do jornalismo como indústria.

Discutindo a violência

Pensemos, então, no fenômeno representado no Brasil pela Mídia Ninja:por uma fração infinitesimal do orçamento médio de um jornal ou de uma emissora de televisão, um punhado de jovens produz uma ruptura no conceito clássico de jornalismo, demonstrando que, em determinadas circunstâncias, a essência do trabalho jornalístico pode existir fora da lógica tradicional da indústria da comunicação. No entanto, o mais interessante nessa questão não é propriamente o aspecto negocial, de como o coletivo de midiativistas vai consolidar seu pitoresco empreendimento. O debate mais interessante, agora, é sobre o jornalismo em si.

Vejamos, por exemplo, um ponto que provocou muitas controvérsias a partir da entrevista de dois representantes do movimento no programa Roda Viva, da TV Culturade São Paulo, na segunda-feira (5/8). Trata-se do modo como a Mídia Ninja deuvisibilidade ao ativismo violento representado pelo grupo chamado Black Bloc, que participa dos protestos de rua com o propósito de praticar depredações.

Para a mídia tradicional, trata-se de vândalos organizados que se ocultam sob uma capa ideológica de validade questionável. Para a Mídia Ninja,os predadores são parte da complexidade social que manifesta seu descontentamento com as instituições. Uns gritam palavras de ordem, outros quebram fachadas de bancos.

Esse debate não pode ser aprofundado se estiver baseado principalmente ou apenas na questão moral implicada no ato de violência, não porque o cânone dos costumes seja limitador das reflexões, mas porque, nesse campo, dá-se obrigatoriamente razão ao Black Bloc, pois com base numa moral subjetiva seríamos tangidos a considerar todas as formas de violência.

E, como tem sido esclarecido nas reportagens da Mídia Ninja, o que, na visão dos manifestantes agressivos, justifica as depredações e os confrontos com a polícia, é o desejo de denunciar “a violência do capitalismo” e de representantes do Estado na vida cotidiana de um grande número de cidadãos.

Se o núcleo original das manifestações reportadas de dentro pela Mídia Ninja exigeo cumprimento do direito básico à mobilidade, e em torno dele também se expressam descontentamentos com relação à democracia representativa e à corrupção, na periferia transborda a revolta com o estado de beligerância permanente com que a polícia trata os cidadãos das classes menos favorecidas.

Ao dar voz a esses protagonistas, a Mídia Ninja obriga a imprensa, o Estado e a sociedade a incluir nos debates a violência institucionalizada que subsiste nas costas largas da democracia.

Essa pauta se resume numa pergunta de grande valor simbólico: “Onde está Amarildo?”

 

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