A teoria dos atos de fala, velha conhecida de lingüistas e analistas de discurso, é responsável por muito chamar a atenção dos analistas de textos para a importância do lugar de onde se fala ou se observa a linguagem. A observação da imprensa é igualmente afetada pela mudança de posição institucional dos críticos. Por exemplo, pode-se experimentar, em certos casos, abandonar o lugar do jornalista para ocupar outro tipo de posicionamento na trama institucional.
Impõe-se, antes de mais nada, a preliminar de esclarecimento (aliás, bastante reiterado por nós próprios em vários textos para este Observatório) de que a imagem – e não o conteúdo ou o discurso argumentativo dos textos jornalísticos – é o elemento cada vez mais posto em primeiro plano pela mídia, como conseqüência do primado da eletrônica na midiatização, isto é, da articulação visceral da mídia com as instituições da sociedade tradicional.
O que significa esse primado? Em termos imediatos, que a sociedade midiatizada se move preferencialmente na atmosfera emocional dos costumes e das formas sensíveis ou imagísticas de percepção – o reino dos fins estéticos e morais, ao invés da contextualização histórica das questões de interesse público. A mídia cria os seus próprios contextos afetivos, que não passam, em última análise, de ‘cenários’ oferecidos à participação coletiva.
Numa estrutura dessas, cabe perguntar sobre que tipo de conhecimento pode ter a população a respeito das questões que conformam a cidadania ou que interessam diretamente ao desenvolvimento econômico e institucional do país. Ora, ao longo do ano de 2006, tivemos a oportunidade de acompanhar, de dentro de uma instituição afeta aos livros e à leitura, o relacionamento da mídia com a administração pública de um modo geral. São curiosos os resultados.
Realidade irreversível
Uma primeira conclusão é a de que o público-leitor ou espectador não se põe devidamente a par da realidade das ações de Estado e governo, especialmente no nível federal. Quando se trata de município ou de unidade federada, o estado geral das coisas pode ser seguido, tanto pelo noticiário local quanto pela própria observação direta. Assim, a crise da gestão pública num estado como o Rio de Janeiro é aferida por meio da mídia, mas principalmente por meio da difícil, senão perigosa experiência do cotidiano, arrostada por todo e qualquer cidadão.
No âmbito do poder central, a desinformação pode ser profunda. E não se trata de informação de alto nível ou de detalhamento da complexidade de decisões estratégicas. Trata-se, sim, do conhecimento mais comezinho sobre fatos correntes relativos à gestão cotidiana da vida comum.
Vamos exemplificar com um pequeno fato, atinente à área em que nos movimentamos ao longo de todo este ano.
No início de dezembro, realizou-se em Paris, no espaço institucional da Unesco, uma reunião de representantes das bibliotecas nacionais oriundos dos Estados Unidos, Europa, Ásia, África, Oriente Médio e América Latina, para discutir o protótipo de uma biblioteca mundial digital, proposta pela Biblioteca do Congresso (EUA). O foco do projeto é a digitalização de material único e raro (manuscritos, mapas, livros, filmes, fotografias, registros arquitetônicos, peças musicais, etc.), com vistas ao livre acesso público na internet. Sem qualquer pano de fundo comercial, a iniciativa centra-se no interculturalismo, visando a expandir os conteúdos ‘não-ocidentais’ na internet.
No quadro do desenvolvimento atual das tecnologias eletrônicas, a informatização das bibliotecas é uma realidade irreversível. Para os especialistas, o conceito de ‘biblioteca digital’ se investe, porém, de alguma dubiedade. Se por um lado, pode ser visto como uma evolução do conceito de biblioteca tradicional – que mantém e expande todos os serviços anteriormente existentes –, por outro, implica um novo tipo de biblioteca que, basicamente, oferece seus acervos na forma digital. Neste ângulo, esse novo tipo é mais limitado do que o clássico, mas ao mesmo tempo oferece oportunidades de compreensão intercultural inéditas na História.
Ignorância induzida
O protótipo agora discutido pretende ser um repositório de conhecimento de todas as culturas e em todas as línguas. Os idiomas de partida do projeto seriam inglês, francês, espanhol, russo, árabe e chinês. Acrescentou-se o português: aliás, o Brasil, representado pela Fundação Biblioteca Nacional, foi o único país sul-americano a participar do encontro.
Pois bem, o evento da reunião, a presença da língua portuguesa, o fato por inteiro de uma biblioteca mundial digital – tudo isto se reveste de indiscutível importância pública em qualquer nação letrada. Mas é provável que ninguém, nem mesmo gente diretamente interessada, tenha tomado conhecimento do assunto, porque simplesmente nada se noticiou. A mídia se debruça preferencialmente sobre as rupturas violentas ou escandalosas do cotidiano ou sobre o show nosso de cada dia. Como bem disse um ferino autor norte-americano, a mídia nos levar a morrer (mentalmente) de tanta diversão.
O exemplo arrolado é uma gota no oceano de fatos importantes em andamento na esfera pública. A sua ocultação sistemática em favor do que se presta ao velho conceito jornalístico de notícia (o paradigma do ‘homem mordeu o cachorro’) é uma contribuição para que se intensifique a situação de incerteza em que nos mergulha a informação pública contemporânea, unidirecionada para o ‘espetacular’. A perspectiva habitual do jornalista é a de que, quanto mais informação (seja de que natureza for), maior o conhecimento. É preciso rever esse paradigma que aposta no caos das práticas comunicativas norteadas apenas pelos índices de audiência e que nos dá apenas incerteza visceral sobre a realidade da História. Incerteza implica dúvidas, indeterminação e insegurança. Mas pode também significar ignorância induzida.
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Jornalista, escritor, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro