TELEVISÃO
Isabela Boscov
Gente normal, poderes extraordinários
‘Desde setembro em exibição nos Estados Unidos, a série Heroes rapidamente ganhou uma alcunha: é o novo Lost. No jargão de fãs e críticos, isso significa que o programa traz, primeiro, uma premissa engenhosa (pessoas comuns descobrem que têm superpoderes); segundo, uma forma consagrada por outras séries de sucesso, como Arquivo X e o próprio Lost, de convidar o telespectador a mergulhar numa mitologia e tentar desatar a rede de mistérios proposta pelos autores; terceiro, entretenimento de grande qualidade técnica e narrativa. Acima de tudo, porém, o que Heroes oferece à platéia é o santo graal desta nova era da interatividade: a experiência de participar de um fenômeno pop e impulsioná-lo. Essa é uma qualidade evidente desde o primeiro episódio, que estréia nesta sexta-feira, 2, no canal Universal: de Tóquio a Madras e Nova York, pessoas como quaisquer outras se apercebem de que estão ganhando habilidades extraordinárias. Um policial (Greg Grunberg) ouve pensamentos. Uma líder de torcida (Hayden Panettiere) se regenera de qualquer ferimento ou mutilação. Um candidato político (Adrian Pasdar) alça vôo, de forma muito literal. Um desenhista de quadrinhos (Santiago Cabrera) pinta o futuro. Um funcionário de escritório (Masi Oka) dobra o tempo e o espaço à sua vontade. E o filho de um geneticista indiano (Sendhil Ramamurthy), embora não tenha nenhum poder anormal, descobre que todos esses super-heróis estão despertando ao mesmo tempo. Mas por que essas pessoas, com esses poderes específicos – e nesse exato momento?
Essa é uma pergunta que, esperam os criadores de Heroes, seja capaz de ancorar várias temporadas sucessivas com audiência acima dos 14 milhões de espectadores – a marca com que a série estreou nos Estados Unidos. E, se possível, temporadas vividas com um mínimo de tranqüilidade criativa. Essa é, afinal, a grande implicação por trás da afirmação de que Heroes é o novo Lost – a de que Lost deixou de ser o que era, e hoje mais irrita os fãs do que os seduz. A ameaça que pesa sobre Heroes é real. Desde Além da Imaginação, criada por Rod Serling nos anos 50, as séries fantásticas se provaram um território fértil para experimentos narrativos na televisão americana, além de um excelente chamariz de público. Mas, até hoje, ninguém terminou incólume a travessia desse território. Arquivo X, valentemente, só começou a tropeçar lá pelo seu quinto ano. No nono e último, agonizava a olhos vistos, sem resposta coerente para os vários mistérios com que acenara. Lost entrou nesse processo bem mais cedo, por um motivo tão fácil de identificar quanto difícil de sanar: está claro agora que seu time criativo não tem um Grande Plano – ou seja, começou a história sem saber onde ela vai terminar. As evidências estão por toda parte. As mais notórias: Michael Emerson, o excelente ator que vive o sinistro Henry Gale, foi contratado para apenas três episódios. O público gostou dele – e Henry Gale se tornou um personagem crucial da trama. Ou melhor, de uma nova trama, que não existia antes de sua entrada em cena e deslocou todo o eixo (e o rumo) da narrativa. O inverso aconteceu com a atriz Michelle Rodriguez. Antipática e encrenqueira, ela teve sua participação encerrada de forma abrupta – e não há notícia de como serão amarradas as pontas soltas deixadas por sua personagem. A sensação que essas mudanças provocam fica clara nos inúmeros blogs e sites ainda dedicados à série: os fãs se queixam de que todo o esforço que dedicaram a identificar pistas e decifrá-las foi em vão, já que os autores parecem estar tão perdidos quanto eles próprios.
Tim Kring, o veterano da televisão que bolou Heroes, diz estar atento às armadilhas em que as séries fantásticas costumam cair. Em outras palavras, promete manter o número de protagonistas ‘na ativa’ limitado a pouco mais de uma dezena (o de Lost não pára de se expandir) e, o mais importante, resolver velhos mistérios antes de propor outros, novos. ‘Fiz um pacto comigo mesmo de que não transformaria Heroes em mais uma dessas séries que arrastam um mesmo entrecho temporada atrás de temporada’, diz – pela simples razão de que, quanto mais barulho se faz em torno de um enigma, mais decepcionante, no fim, parece sua resolução. Num quesito, ao menos, Heroes já pode se considerar uma série plenamente bem-sucedida: na capacidade de alçar atores da completa obscuridade à total notoriedade. Hayden Panettiere, a intérprete da líder de torcida que se cura até da morte, é uma dessas revelações – assim como Masi Oka, ex-técnico em computação gráfica da Industrial Light & Magic de George Lucas, que virou sucesso no papel do nerd capaz de manipular o tempo. Superpoderes, aliás, que podem ser muito úteis a Tim Kring no desafio de evitar que seu Heroes se transforme no próximo Lost.
Lições de um seriado perdido
ENREDO
ONDE LOST ERROU
Propõe novos enigmas antes de resolver os antigos, criando contradições entre eles
COMO HEROES PRETENDE EVITAR O ERRO
Garante que alguns de seus mistérios serão solucionados antes de avançar para novos enredos
PERSONAGENS
ONDE LOST ERROU
Não pára de expandir seu elenco, fazendo com que personagens cruciais, como John Locke, desapareçam sem dar notícias
COMO HEROES PRETENDE EVITAR O ERRO
Deverá manter um número limitado de protagonistas ‘na ativa’ a cada ciclo de episódios, como a líder de torcida interpretada por Hayden Panettiere’
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O ataque dos ‘legenders’
‘Antes mesmo da estréia de Heroes, muitos brasileiros já conferiam o seriado quase que simultaneamente com sua exibição nos Estados Unidos – e com legendas em português. Isso é reflexo da mudança na relação dos fãs com esses programas proporcionada pela internet. Até não muito tempo atrás, o máximo que um amante das séries podia fazer era colecionar episódios antigos e confraternizar com seus pares em convenções. Hoje, eles se reúnem em comunidades virtuais que produzem versões legendadas de seus seriados favoritos – atividade que, de resto, é um flerte com a contravenção. Há dezenas de sites de ‘legenders’, como se auto-intitulam. Como residem em diferentes partes do Brasil, muitas vezes eles se conhecem apenas pela internet. No SóSéries, o mais popular deles, vinte voluntários se mobilizam para que a versão em português das séries esteja disponível na rede na manhã seguinte à exibição nos Estados Unidos. Por volta de 1 da madrugada, meia hora depois de o episódio terminar por lá, eles o baixam em seus micros, por meio de serviços de troca de vídeos. Em seguida, fazem um mutirão para traduzir as falas. Outra brigada é encarregada de sincronizar as legendas com os vídeos. Por fim, há os responsáveis pela revisão. ‘As legendas das séries mais conhecidas, como Lost e Prison Break, chegam a ser baixadas mais de 6 000 vezes’, diz o administrador de redes Cristovão Fernandes Castro, de 23 anos, mais conhecido como ‘Cranyo’ e sócio-diretor do site. Os ‘legenders’ adotam alguns truques na tentativa de não ser enquadrados como pirateadores. Eles se utilizam de provedores fora do Brasil e oferecem em seus sites apenas as legendas – o fã tem de capturar o vídeo em outro serviço para poder assistir a ele. Mas estão na mira dos produtores de TV. Para a Associação de Defesa da Propriedade Intelectual, ligada à poderosa Motion Picture americana, a veiculação das legendas viola os direitos autorais. Depois de ameaçar um site de fãs de Lost com medidas judiciais, a associação conseguiu que ele suspendesse a prática.’
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